Quinta do Calhariz

Lisboa | Sesimbra

Quinta do Calhariz

Localizada nos contrafortes da Serra da Arrábida, a poucos quilómetros do porto da Vila de Sesimbra, Conselho de Setúbal, a Quinta de Calhariz, com cerca de 1000 hectares, é uma propriedade rural, inserida no Parque Natural da Serra da Arrábida. O acesso é feito por estrada particular através da Rua do Boeiro. Constituída pelo Palácio do Calhariz e pelo assento de lavoura da quinta, ainda em total funcionamento agrícola, oferece também um complexo turístico-habitacional constituído por seis casas de Turismo Rural.

A história do lugar da quinta do Calhariz está mapeada ao neolítico datando dessa época o Menir do Vale da Palha, testemunho das primeiras comunidades agropastoris, que terão evoluído para um povoado de grandes dimensões pela idade do bronze (2 000 - 800 a.C) data do monumento funerário da Roça do Casal do Meio. Da idade do Ferro (700 a.C. - 200 a.C), com chegada dos primeiros navegadores do Mediterrânico Oriental, restam vestígios de um santuário na Lapa da Cova, e do período Romano encontraram-se vestígios de uma habitação no Vale da Palha.

A história da propriedade como Quinta do Calhariz inicia-se em 1483 com aquisição da propriedade por Gil Vaz da Cunha aos herdeiros de mestre Joane, fidalgo da casa do infante Duque de Beja e pai de D. Manuel I. Desde essa época que a quinta fica nas mãos da mesma família sem nunca ter sido objeto de venda, tendo sido transmitida de geração em geração por cinco séculos, até chegar aos atuais proprietários, Duques de Palmela.

Gil Vaz da Cunha “irá aqui empreender grandes obras, tais como a construção de uma casa, a plantação de vinhas, de pomares e de cereais, tudo isto para obter a confirmação de uma concessão por quatro vidas, que, finalmente, o rei D. Manuel lhe concede a 4 de Maio de 1504” (Stoop, 1999, p.339). Ainda no mesmo ano, D. Maria da Silva, filha e herdeira de Gil Vaz da Cunha, lega em testamento a concessão de toda a quinta a seu sobrinho, D. Francisco de Sousa, intendente do rei.

Já no século XVII, a velha mansão de Gil Vaz da Cunha sofre grandes transformações pelas mãos de D. João de Sousa, grão-prior do Crato e vea­dor da casa da rainha D. Maria Francisca de Sabóia, então proprietário da casa, e dois dos seus sobrinhos a quem acabará por legar a quinta, D. Francisco de Sousa (1631 - 1711), capitão da guarda dos reis D. Afonso VI e D. Pedro II, e D. Luís de Sousa (1637 – 1690), arcebispo de Braga de 1677 até 1690 e membro do conse­lho de Estado e embaixador extraordinário de D. Pedro II em Roma em 1675.

A construção do palácio é datada do último quartel do século XVII de acorde com a datação dos azulejos da denominada Sala das Batalhas e Salão da Ferradura que são respetivamente de 1672 e de 1675.  É também desta época a capela da Quinta (c. 1681) e o lagar hidráulico de três pisos do Rio do Olho (c. 1693), obra do arquiteto João Rodrigues Mouro, conhecido por ter trabalhado nas fortalezas da costa da Arrábida (casadecalhariz.pt). O projeto da capela é de 1681 e é atribuído ao arquiteto João Antunes (c. 1643 – 1712), futuro arquiteto do rei. As obras terão sido financiadas por D. João de Sousa, tio de D. Francisco e pelo seu irmão, D. Luís de Sousa, a quem o Papa Inocêncio XI concede a bula para a capela, dedicada a São Francisco de Assis. “Esta con­serva, além de numerosas relíquias, um breve do papa Ino­cêncio XI e é ornada dos mais modernos mármores e azu­lejos, verdadeiros protótipos das realizações ulteriores do barroco joanino. (…) o sumptuoso altar em embutidos de mármore, á maneira dos mosaicos florenti­nos, deve-se ao mestre João Antunes” (Stoop, 1999, p.343). A nave, decorada a azulejos ilus­trando a vida do santo protetor, é muito provavelmente obra de Gabriel del Barco. “A sacristia encerra também raros embrechados, conjunto extremamente delicado de conchas nacaradas, de calcites da serra da Arrábida e até preciosas rosetas de Veneza em vidro triplo” (Stoop, 1999, p.343).

Embora conserve muito do seu carácter primitivo, todo o complexo foi amplamente remodelado no início do século XIX, por D. Pedro de Sousa Holstein (1781-1850), diplomata e herói das Guerras Liberais, que foi, sucessivamente, o primeiro conde (decreto de D. Maria I de 11 de Abril de 1812), o primeiro marquês (decreto de D. João VI de 3 de Julho de 1823) e primeiro duque de Palmela (1833, de juro e herdade desde 1850). Sob a sua direção e com a participação dos arquitetos e cenógrafos italianos Achile Rambois (c. 1810 - 1882) e Giuseppe Luigi Cinatti (1808 - 1879), liderou uma importante campanha de restauro da casa nobre onde procurou recriar as linhas da Grécia e da Roma antigas segundo as orientações do neoclassicismo, então tão na moda (Bowe, 1989, p.77). Por sua morte, em 1850, os seus filhos mandaram erguer um tholos em sua homenagem na mata anexa aos jardins, possivelmente desenhado pelo arquiteto Giuseppe Cinátti (casadecalhariz.pt).

Ao longo dos séculos, a casa do Calhariz acolheu várias personagens de relevo histórico, destacamos a estadia do escritor Alexandre Herculano, que em 1857 arrendou a quinta a D. Domingos de Sousa e Holstein, e aqui se dedicou ao cultivo de bens agropecuários, como a beterraba, o azeite, a lã, o arroz e a seda Exatamente um século depois, em 1957, a casa do Calhariz acolheu a visita da rainha Elizabeth II de Inglaterra, e em 1959 a visita da sua irmã, a Princesa Margaret Rose de Inglaterra (1930-2002), Condessa de Snowdon. (casadecalhariz.pt)

Hoje em dia, a quinta continua a dedicar-se à produção agropecuária, com projetos no domínio “da floresta, da vinha, da pecuária, da agricultura e do turismo ambiental, equestre e cultural” (casadecalhariz.pt).

O acesso à casa faz-se através de grande terreiro, limitado pelo palácio em forma de U e rematado pelo gradeamento de ferro ponteados por grandes pilares de pedra trabalhados. O edifício que se ergue à nossa frente constitui um exemplo característico das casas nobres do século XVII, onde desapareceram os muros defensivos a ligar as partes laterais do edifício (Stoop, 1999, p.339). Em frente à porta principal encontra-se um bebedouro de pedra para os cavalos das carruagens. “Aqui e contrariamente ao costume, o andar nobre situa-se no rés-do-chão, encimado como que em reminiscência do Renascimento Italiano, por um mezanino com janelinhas quase quadrangulares. O majestoso portal maneirista, de frontão quebrado, sustentado por duas colunas salomónicas, constitui o principal ornamento desta fachada bastante linear” (Stoop, 1999, p.339).

O jardim, localizado num plano inferior em relação ao palácio, surge ao longo da sua compridíssima fachada nordeste, que totaliza 15 portadas distribuídas de forma regular. A partir destas portadas, tirando partido da inclinação suave do terreno, tem-se acesso a uma série de terraços que descem até ao jardim e cuja altura total chega a ultrapassar a altura da própria casa.

O terraço superior, grande e simples, encontra-se decorado com floreiras e namoradeiras forradas a azulejos azuis e brancos (colocados por volta de 1730) onde nos podemos sentar e admirar todo o jardim, localizado alguns metros abaixo, e a paisagem até Lisboa.

O terraço inferior apresenta uma gruta rodeada por enormes volutas de pedra. É daqui que, através de uma escadaria de pedra, se desce para o jardim, um belo parterre á francesa situado num plano inferior, decorado por buxos recortados e, mais a baixo, por um curioso tanque em forma de trevo.

Segundo Bowe (1989, p.77), o parterre do jardim possui uma “[…] conceção simples e em perfeita harmonia com a serra circundante. Embora muitíssimo intrincado, o motivo do buxo do jardim desenha-se em três grandes quadrados, dois deles com lagos circulares no meio e o terceiro com um grande vaso de pedra.”

Uma grande escadaria de pedra dá acesso a um outro patamar mais abaixo, onde, ao longo da encosta se estende a vinha. Já no patamar da vinha, encontramos o segundo lago em forma de trevo cujas curvas ousadas “balançam de um lado para o outro, voltando para o céu um grande espelho de água”, como referiu Russell Page em 1935. Segundo Bowe (1989, pp. 78-79) “O efeito de espelho é realçado pelo facto de o lago ser mantido cheio até à borda, de modo que parece estar quase a derramar-se na paisagem. No centro há uma fonte composta por três deuses marinhos que sopram em búzios, semelhante à Fonte dos Tritões de Bernini, na piazza Barberini, em Roma.” Curiosa é também a disposição dos jardins numa sequência de patamares abertos para a paisagem que o envolve, que traz à memória os jardins da Villa Medici em Itália abertos sobre a vista da cidade de Roma.

A história secular da Quinta, a beleza do património construído a par dos jardins e fontes e vistas deslumbrantes sobre a propriedade e o parque natural, criam uma unidade de paisagem única que fazem deste conjunto um exemplo artístico notável.

Texto de Inventário: Guida Carvalho – 2020.

Revisão: Cristina Castel-Branco – 2020.

Quinta do Calhariz

(Consultada em Março de 2020)
ARAÚJO, Ilídio de – Arte Paisagista e Arte dos Jardins em Portugal. Lisboa : Centro de Estudos de Urbanismo, 1962. p. 104.
BINNEY, Marcus – Country Manors of Portugal. Lisboa: Difel, 1987. pp, 80-85.
BOWE, Patrick; SAPIECHA, Nicolas (fot.). – Jardins de Portugal. Lisboa: Quetzal Editores, 1989.
STOOP, Anne – Quintas e Palácios nos Arredores de Lisboa. Porto: Livraria Civilização, 1999.
http://www.casadecalhariz.pt/pt-pt/
http://www.monumentos.gov.pt/Site/APP_PagesUser/SIPA.aspx?id=6807

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