Santuário de Nossa Senhora do Cabo Espichel

Lisboa | Sesimbra

Santuário de Nossa Senhora do Cabo Espichel

O Santuário de Nossa Senhora do Cabo Espichel, também conhecido por Santuário de Nossa Senhora da Pedra da Mua, localiza-se no distrito de Setúbal, a ocidente da Vila de Sesimbra, ainda no Parque Natural da Serra da Arrábida. É delimitado a Sul e a Oeste pelo Oceano Atlântico, estando construído sobre uma falésia ventosa que cai a pique sobre o mar.

“A paisagem espalhava-se a partir do arco de areia que dividia o mar da terra, tudo o que se vê de humano é pequeno, tudo o que se vê de natural é sublime. Para cima, o perfil escuro de Sintra corta o céu brilhante e meio rosa. À nossa frente e para sul, o horizonte em linha pura divide o céu do mar. A nossos pés, placas verticais de pedras imensas encostadas umas às outras são batidas pelas ondas, pela espuma e pela força do mar. É o Oceano Atlântico azul infinito, e temeroso para os povos vindos do Mediterrâneo. O Cabo Espichel é o Finisterra dos Romanos, o fim da terra e o princípio do mistério do mar. Não admira que este miradouro natural tenha sempre suscitado práticas religiosas que deixaram marcas construídas no planalto ventoso que cai a pique sobre o mar.” (Castel-Branco, 2015).

As mais antigas referências ao culto de Nossa Senhora do Cabo datam de 1366 e estão presentes num documento da chancelaria de D. Pedro I. A origem do culto teve por base a lenda da Pedra Mua segundo a qual “dois idosos, um de Alcabideche e outro da Caparica, sonharam com uma luz a brilhar no Cabo Espichel, que a Virgem lhes recomendara seguir. Ambos se puseram a caminho, seguindo a misteriosa luz que continuava a brilhar todas as noites. Quando chegaram ao Cabo ficaram maravilhados ao verem a imagem da Virgem Maria montada numa mula [Mua] que subira a escarpada arriba deixando nas pedras as marcas das suas patas." (Amaral, 1964, p.21). Esta lenda deu origem à peregrinação e, consequentemente, à construção do conjunto do Santuário da Nossa Senhora do Cabo que procura perpetuar a mística em torno da lenda e a devoção das gentes do povo.

A subida que podemos fazer hoje também à “escarpada arriba” a Norte do Cabo revela-nos a razão desta atribuição divina que deixou “nas pedras as marcas das suas patas”. As placas calcárias quase verticais desta elevação foram escorregando e numa delas apareceram pegadas de dinossauros perfeitamente marcadas e visíveis que foram atribuídas à mula que transportava a Nª Senhora até ao alto do Cabo Espichel (Castel-Branco, 2015). Estas pistas de dinossauros do Jurássico Superior, formam um conjunto de vários trilhos observáveis a partir do alto da arriba da praia dos Lagosteiros. O conjunto é considerado uma das mais antigas jazidas de pistas de dinossauros de Portugal e foi por isso classificada como Monumento Natural em 1997.

No início do séc. XV é construída uma primeira capelinha onde os peregrinos se deslocavam para fazer as suas orações (Proença, s.n., pp. 12-13). Por volta de 1428, os terrenos e a Ermida foram doados por Diogo Mendes de Vasconcelos ao convento de São Domingos de Benfica, para que naquele espaço fosse construído um convento. A oferta é recusada dois anos mais tarde porque "o sitio he muyto áspero, & deserto", passando o local para a alçada da Câmara de Sesimbra, que lá mantinha um ermitão. Em 1431, é construída a primeira ermida em pedra junto à falésia, chamada então de Ermida de Santa Maria da Pedra de Mua, hoje conhecida como Ermida da Memória. Um ano depois, é fundada a primeira confraria do – círio, grandes grupos de peregrinos, organizados em romarias coletivas – e iniciaram-se as peregrinações da Nossa Senhora do Cabo, ficando encarregues da organização da festa cerca de 30 freguesias, que o faziam através de rotação anua. O culto a Nª Senhora do Cabo baseia-se num sistema anual de rotação da imagem de Nossa Senhora, que passa um ano em cada uma das 26 freguesias do Círio Saloio, mantendo-se assim o “giro das freguesias” que se encontravam no Cabo Espichel para a entrega da imagem e alfaias, durante a semana da Ascensão.

Sacralizou-se assim este santuário e nele restam as marcas construídas, e paira a memória de uma devoção sentida e muito festejada. Para louvar a Deus, pedir e agradecer à Nª Senhora do Cabo, foram sendo ritualmente mantidas peregrinações que traziam a imagem de Belém, atravessavam de barco e faziam em procissão todo o areal da Costa da Caparica. Subiam ao Cabo e as orações e músicas acompanhavam-se de grandes festas profanas com bailes e romarias, touradas e até óperas. (Castel-Branco, 2015). Estas romarias foram ganhando grande importância, tendo não poucas vezes contado com presença da corte e da Família Real.

A crescente quantidade dos romeiros ao Cabo Espichel depressa leva à necessidade de expansão da capela, e em 1495 dá-se o inicia da construção da primeira igreja de Nossa Senhora do Cabo. Em 1516 já existiriam à sua volta algumas hospedarias construídas pelos romeiros e confrarias sem planeamento. Tudo era bastante simples, rústico e improvisado, no entanto não impedia que, de ano para ano, se tentassem melhoramentos na organização do evento e nas suas instalações. A atual Igreja de Nossa Senhora do Cabo, foi mandada edificar pelo rei D. Pedro II em 1697, segundo o projeto do arquiteto real João Antunes, e com mão de obra dos círios das várias freguesias. Em 1701 a nova igreja terá acolhido a imagem da Senhora do Cabo vinda da pequena Ermida da Memória, sendo que as suas obras só foram concluídas m 1707, com a finalização dos trabalhos de pintura do seu interior.

Segundo Ribeiro de Guimarães no livro 'Sumário de Vária História', conta-se que “antes de 1710, o arraial era circundado de casas para os romeiros, sem alinhamento nem ordem alguma. Neste ano estudou-se o novo arraial e em 1715 [o projeto já] estava pronto.” O novo arraial deveria ocupar um vasto terreiro em forma de U aberto para nascente, definido a poente pela igreja e lateralmente pelos edifícios das Hospedarias que serviam para a acomodação ordenada dos romeiros, de acordo com um desenho planificado de raiz. Estas são edificadas entre 1715 e 1794 e são constituídas por dois extensos corpos laterais que enquadram a igreja.

Em 1770, D. José I, devoto de Nossa Senhora, comparecia às festas introduzindo grandes melhoramentos, donde se destaca a construção de um aqueduto que trazia água da Azóia para abastecimento exclusivo dos romeiros. Para receber a água do aqueduto foi construída uma Casa da Água com azulejos da Fábrica de Belém, "para descanso e refrescamento e lazer”, precedida por uma comprida escadaria com cinco lances e quatro patamares, ambas alinhadas com o cruzeiro, no início do terreiro, e com a igreja ao fundo, num verdadeiro eixo barroco. A água fresca que aqui chegava era depois encaminhada para um fontanário com lavadouro comum para uso dos peregrinos, para um poço de armazenamento e para os tanques de utilização das hortas. No mesmo ano é também edificada a «casa da ópera», com cenários e acomodações, pelos “círios” de Lisboa, hoje em ruínas.

Todos os anos, a corte passou a deslocar-se ao cabo Espichel para assistir à romaria, para assistir aos festejos com touradas, festas, comércio e feiras. Em 1804 o arraial foi cedido aos peregrinos pelo rei D. João VI, para que estes pudessem comercializar sem que tivessem de pagar algum tipo de imposto ou taxas.

Em 1887, rompe-se pela primeira vez a tradição das romarias ao cabo Espichel pelos círios saloios: a freguesia de Belas entrega a imagem diretamente à freguesia seguinte, sem que esta retorne ao santuário. A partir daqui a tradição é rompida, e a imagem passa a ser maioritariamente transmitida diretamente entre as freguesias. Hoje em dia todos os anos se realiza uma Festa em Honra de Nossa Senhora do Cabo Espichel no último fim de semana de setembro. O círio dos saloios apesar de já raramente se realizar ainda continua vivo através das celebrações dos círios de Azoia, Palmela e Sesimbra.

Hoje em dia podemos visitar no local o monumental complexo barroco, constituído pela igreja, longo terreiro retangular frontal, delimitado de cada lado pelas hospedarias, formando um U desigual e um cruzeiro no topo. Cada corpo é constituído pela repetição de um módulo, composto por «loja» e «sobrado», coberto por um telhado de duas ou quatro águas. Desta forma, cada família dispunha de um apartamento rudimentar, onde se instalavam durante as festas de devoção à Nossa Senhora do Cabo. As fachadas são sóbrias, próprias da arquitetura popular de cariz vernacular, e o tratamento dos vãos, pavimentos, chaminés e telhados revelam a dedicação dos círios a esta construção. A arcaria que percorre o piso térreo confere ao conjunto ritmo e uma modesta monumentalidade, perfazendo um total de sessenta e três arcos na ala Norte e quarenta e sete na ala Sul. A ala Setentrional foi crescendo até aos finais do século XVIII, defendendo o terreiro dos ventos Noroeste. A arquitetura de carácter popular e ruralista das hospedarias, contrastam com a delicadeza da fachada principal da igreja, terminada em frontão triangular sustentado pelas pilastras e ladeado por duas torres sineiras.

Alinhada com a igreja e com o cruzeiro para este, encontra-se a casa de água ou mãe de água, fazendo término ao aqueduto. Esta encontra-se inserida num antigo complexo horta-jardim murado, também conhecido como Hortas dos Peregrinos. O edifício da casa de água possuí uma planta hexagonal iluminada superiormente por um lanternim e dispõe, no seu interior, de uma bela fonte, em mármore lavrado, com motivos escultóricos de conjuntura rocaille, e de bancos de pedra, rematados com um lambril de azulejos do século XVIII que relatam a história do Santuário, documentando a construção da ermida, da igreja e das hospedarias, bem como a realização dos "círios" populares.

A horta jardim encontra-se disposta em patamares para vencer a inclinação do terreno. Exteriormente ao recinto murado, existe um poço, atualmente vedado, para uso comum dos peregrinos. Dentro do recinto, a existência de canais (caleiras) ao longo do muro, denunciam a existência de uma possível rede de rega que serviria as hortas e o jardim.

Isolada, junto à falésia, encontra-se a mais antiga construção de todas, a ermida da Memória, com uma arquitetura simples, mas de grande valor, caracterizada pela sua cúpula de aspecto árabe e um pequeno adro com bancos de pedra, de onde se obtém uma ampla visão sobre o oceano Atlântico.

O Cabo Espichel é um miradouro excepcional onde foi sendo construído um conjunto de diferentes estilos arquitetónicos, envolvidos por uma paisagem natural de incomparável identidade.

O conjunto encontra-se classificado como Imóvel de Interesse Público, segundo o Decreto nº 37 728, DG, 1.ª série, n.º 04 de 05 janeiro 1950. Em 1963 foi delimitada uma zona especial de proteção "non aedificandi" de acordo com a Portaria, DG, 1.ª série, n.º 280 de 29 novembro, que abrange a paisagem envolvente. Como referido anteriormente, está também incluído no Parque Natural da Serra da Arrábida.

Inventário: Andreia Leite – 2011; David Gonçalves – 2011; Karin Ojasoo, 2011; Rosa Ávila – 2011.

Adaptação: Guida Carvalho – 2020.

Revisão: Cristina Castel-Branco – 2020.

Santuário de Nossa Senhora do Cabo Espichel

(Consultada em 2011 e abril de 2020)
AMARAL, Francisco Keil do [et. al] – Santuário da Senhora co Cabo Espichel. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1964.
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Rua Nossa Sra. do Cabo