Quinta da Bacalhoa
Lisboa | Setúbal
Quinta da Bacalhoa
Azeitão é uma vila desde sempre atraiu o recreio da nobreza que a escolheu para descanso e distração. Uma das razões para este íman das famílias nobres era sem dúvida o fácil acesso a Lisboa através da Vala Real que prolongava a ribeira de Coina (braço do Tejo que separa o Barreiro do Seixal) e entrava quase até à Portela, permitindo na maré alta um transporte muito cómodo quase até Azeitão. Por outro lado, a presença das serras da Arrábida e S. Francisco, com a sua vegetação cerrada e diversidade de caça, oferecia o desporto preferido da nobreza. Tudo isso resultou numa fixação desde a Idade Media, e numa boa quantidade de palácios a partir do Renascimento.
Do ponto de vista dos jardins, a beleza das serras e a disponibilidade em água dos seus calcários permitiram criar joias da arte de jardins em Portugal: as Quintas da Bacalhoa, das Torres, do Calhariz - cada uma delas com jardins e palácio, e as duas últimas com assentos de lavoura que foram atraindo mais famílias e mais construções apalaçadas para vilegiatura em Azeitão.
A Quinta da Bacalhoa é considerada o segundo jardim dos Vice-Reis com influência Indiana a seguir à quinta Penha Verde, e encerra o significado muito forte da celebração de um herói; o Vice-Rei, Afonso de Albuquerque que morre antes de regressar sendo o seu filho Brás que se encarrega da construção, uma vez que recebeu o poder, fortuna e status ganhos pelo seu heroico pai ao serviço da Coroa na India e estendendo o domínio português até Malaca.
Brás criou em Azeitão um jardim “mausoléu” com um percurso simbólico e pavilhões que relembram as qualidades de Afonso de Albuquerque e um tanque grande que de acordo com a pedra da entrada data de 1554, embora os azulejos no pavilhão datem de 1532. Na altura as relações entre os Mogóis e a Índia Portuguesa já estavam estabelecidas como escreve Rui Vilar no Goa and the Great Mughal de 2004 “(…) os primeiros contactos datam de 1530 [e foram] significativamente mais pacíficos, estimulando não só comércio, contactos diplomáticos e trabalho missionário, mas também associações e influências mútuas nos campos da cultura e das artes” e as mesquitas, mausoléus e jardins de Babur e Humayun já tinham criado uma reputação associada ao poder. Basta-nos ler Qandahari, o historiador de Akbar, que afirma “(…) um bom nome para os reis (consegue-se) com construções majestosas (…) quer dizer, o padrão da medida dos homens é avaliado pelo Valor das (suas) construções e pelos seus Princípios avalia-se o estado da sua casa” (Koch, 2002, p. 13).
Brás também tinha viajado a Itália em 1524 e à Espanha de Carlos V (1526), acompanhando a Princesa Isabel a Granada para o seu casamento com o Imperador; estas duas influências foram amplamente estudadas no que se refere a arquitetura, pois a visão de Brás da Ville Medici e do Alhambra islâmico em Granada influenciaram a renovação da arquitectura da Bacalhoa, como demonstrado por Rasteiro 1895 e Azevedo 1969. As villas florentinas construídas antes de 1524 eram apenas a Villa Medici em Fiesole desenhada por Michelossi c. 1458-1461 e a Villa Medici a Castelo desenhada em 1538 por Nicolo Tribolo e completada por Amanati e Buontalenti em honra dos Medici estabelecidos como monarquia em 1537.
O aggiornamento da Bacalhoa foi conseguido abrindo os pórticos ocidental e norte com medalhões esculpidos como os da Piazza Santissima Anunziata em Florença e Azevedo afirma a primazia da Bacalhoa como o primeiro palácio renascentista em Portugal, embora com um toque islâmico (Azevedo, 1969). Se tal se aplica à arquitetura do palácio, o mesmo não se pode dizer do desenho do jardim e pavilhões, onde a influência Indiana é visível. A composição geométrica do jardim em terraços, o pavilhão de água, as faixas de azulejos geométricos decorando as paredes exteriores, os passeios elevados, os canais de irrigação e o sistema de minas e canais para abastecimento de água, podem todos ser relacionados com soluções e ornamentos Indianos.
Quanto à composição, o rectângulo geométrico do jardim da Bacalhoa é uma inovação facilmente associável à disposição dos jardins mogóis. Antes, os jardins em Portugal tinham limites irregulares e não precisavam dum terreno plano armado em terraços ligeiramente inclinados para os canais permitirem o correr da água. A fonte de inspiração pode ser encontrada nos jardins mogóis estudados por Ebba Koch onde um espaço vazio e plano, simetricamente dividido, tem eixos que se cruzam e levam a pavilhões construídos junto ao muro exterior, como pode ser visto no mapa do rio Jumna mostrando (planos-elevações) dos jardins da nobreza mogol (Koch, 2006).
Na Bacalhoa foram construídos pavilhões independentes em locais simétricos ao longo da parte interior do muro limite, denominados Pavilhão da Índia e Pavilhão das Pombas. O pavilhão do lago, conhecido com casa de fresco, em arcaria aberta junto da superfície de água (como os baolis) está assimetricamente localizado, e a Bacalhoa, só tem dois terraços em que todos os cantos do muro periférico têm pequenos pavilhões redondos, incluindo as extremidades do muro de divisão do terraço.
As decorações dos pavilhões de água do jardim da Bacalhoa com azulejos geométricos também lembram a tradição decorativa Indiana com peças de cerâmica vidrada. Ao longo do muro que abastece o lago de água, duas faixas de azulejos lembram muito as paredes decoradas do forte de Agra, ou muitas outras construções na Índia ornamentadas com o mesmo material.
A partir de descrições e de pedaços partidos encontrados no local fez-se um desenho simulando a reconstrução do muro periférico da Bacalhoa, que apresentava na sua origem uma decoração adicional no topo do muro: pirâmides e esferas regularmente alternadas constituíam um ornamento ao muro periférico. Da parte de dentro este muro é ornamentado com bancos revestidos a azulejos e limita o longo passeio que liga o palácio ao pavilhão do lago (casa de Fresco). Este passeio é, tal como nos jardins de inspiração islâmica, sobre-elevado e acima do laranjal que lhe fica encostado.
O grande tanque quadrado, o pavilhão com arcadas, os azulejos azulados e os pavilhões da Bacalhoa têm um sabor novo que levou Marie-Luise Gothein a escrever intuitivamente «... todo o local, tanto a cisterna como a casa, não tem antecedentes semelhantes nem em Espanha nem em Itália». Esta geometria de «efeitos de água», o uso de pavilhões independentes e os azulejos aparecem pela primeira vez na Bacalhoa e mostram como na história da arte do jardim português a Bacalhoa é pioneira, pois o seu desenho é retomado mais tarde em muitos jardins. Como exemplo, as esferas e pirâmides que encimam os muros, como decoração rara, tornaram-se num elemento copiado noutro jardim construído logo a seguir; o jardim do Núncio na Quinta da Penha Longa.
Na viragem do século, a quinta foi adquirida pelo Senhor Joe Berardo e o laranjal foi substituído por vinha, foi cortada a cortina de vegetação de Cupressus lusitanica que isolavam o jardim da estrada aberta nos anos 40 que interfere com o valor deste património renascentista. O sistema de terraços que permitia a circulação de água nas caleiras foi alterado e em parte removido, o terreiro da entrada da quinta foi calcetado perdendo-se com estas alterações a originalidade que constituía o seu valor como jardim autêntico do renascimento português. Atualmente a visita ao jardim é feita em articulação com a visita às adegas e loja de vinhos da marca Bacalhoa e podem ser visitados os espaços exteriores em percursos onde a vinha é o elemento mais importante.
Classificado como Monumento Nacional ao abrigo do Decreto nº 2/96, DR, 1.ª série-B, n.º 56 de 06 março 1996 / ZEP / Zona "non aedificandi", Portaria nº 255/96, DR, 2.ª série, n.º 263 de 13 novembro 1996.
Autor: Cristina Castel Branco – 2017.
Quinta da Bacalhoa
(Consultada em 2017)
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