Tapada das Necessidades
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Tapada das Necessidades
Em Lisboa, no lugar de Alcântara que se estendia da desembocadura da ribeira ao vale e às encostas vizinhas todos os vestígios da antiga ocupação foram eliminados sem deixar qualquer rasto das antigas formas. Ao desaparecimento da ribeira de Alcântara e das suas margens onde um moinho de maré e uma caldeira se juntavam ao Tejo sucedeu-se uma zona industrial onde a beleza natural da zona foi substituída por fabricas, chaminés, barracões, bairros fabris de ruas apertadas e mal drenadas.
Inclui-se nesta zona a obra das Necessidades — igreja, palácio, convento, jardins e cerca —, construída a partir de 1742 na encosta deste vale, sobranceira à desaparecida desembocadura da ribeira. As qualidades naturais deste vale permaneceram até aos finais do século XIX, mas o seu desaparecimento e substituição tornam difícil perceber a razão pela qual o rei D. João V mandou construir uma obra real num local hoje tão pouco atraente.
A escolha do «prazo de alcantara», como era designado quando D. João V o comprou, em 1742, para aí construir uma obra polivalente, dependeu de vários factores, sendo talvez o mais importante as qualidades do lugar: uma paisagem envolvente com alta qualidade cénica decorrente da proximidade e domínio visual sobre o vale de Alcântara, o rio Tejo e o mar a ocidente.
As características internas da cerca das Necessidades, encontram-se ainda hoje quase intactas, como que defendidas pelo muro que a envolve, enquanto a cidade de Lisboa cresceu à sua volta. Contudo, as características externas, nomeadamente a ligação visual à ribeira, rio e mar nada se manteve, a evolução da paisagem foi deteriorando todas as virtualidades que o lugar detinha. A Tapada das Necessidades ocupa uma área com cerca de 10 hectares murados, que incluí um convento entregue, em 1745, pelo rei D. João V à Congregação do Oratório e que tomou primeiro o nome de “cerca das Necessidades”, mais tarde foi designado por «quinta real» e finalmente por “tapada”. Localizado na parte ocidental de Lisboa, o terreno estende-se da Calçada das Necessidades, a este, até à Rua do Borja, a norte, descendo até à Rua Capitão Afonso Pala, que o limita a oeste. Ocupa um troço da encosta (da cota 20 à cota 81) virada a sul e sudoeste, donde um dos seus atributos de qualidade foi a exposição e a protecção em relação aos ventos dominantes. A pendente é muito acentuada e situa-se entre os 5 e 15%, sendo a maioria dos declives acima de 10%.
A falta de água em nascentes ou poços nesta encosta que ia até ao que é agora a Rua Buenos Aires foi sempre um factor limitante, ao qual se associa a pluviometria deficientemente distribuída ao longo do ano em Lisboa. Antes da chegada da água, em grandes quantidades, à tapada, pelo Aqueduto das Águas Livres, a utilização deste espaço como cerca conventual de produção e jardim de traçado barroco de exigente manutenção não teria sido possível. O aqueduto, que vinha sendo feito desde 1731 para alimentar Lisboa Ocidental, transpunha já o vale de Alcântara quando o rei decidiu a localização do palácio, convento e cerca sobre a árida encosta do “prazo de Alcântara”, pelo que foi preciso construir um ramal para alimentar a nova cerca. A travessia do vale de Alcântara, obra resolvida pela sabedoria do engenheiro Manuel da Maia conseguiu vencer as dificuldades da natureza: o vale de Alcântara, com 950 metros de largura e uma morfologia natural que obrigava o aqueduto a atingir 65 metros de altura. A água chega a Lisboa, depois de múltiplas interrupções e mudanças de estratégia, em 1745. Nas Necessidades, a água chega à mãe-d'água, dentro da cerca —A vitória da engenharia hidráulica do Aqueduto das Águas Livres, não se pode desassociar das causas que permitiram qualificar esta encosta para receber o único palácio real da altura e última obra de D. João V.
O estudo das descrições minuciosas de Vieira da Silva sobre Alcântara, combinado com as análises geográficas do comportamento do Tejo no seu estuário, de Orlando Ribeiro, e com as pesquisas históricas sobre o palácio e a sua localização no «prazo de Alcântara», bem documentadas por José Maria de Carvalho, permitem imaginar a obra das Necessidades à luz de uma paisagem de qualidade que a envolve topográfica e cenicamente. Do cimo desta encosta quase vertical é possível imaginar um total domínio visual sobre a enseada de Alcântara e a entrada da barra, criando pontos de vista panorâmicos que vinham sendo aproveitados ao longo dos séculos tanto para defesa como para a oração e o culto religioso.
O cunho religioso desta zona faz-se sentir por volta de 1613, quando é levantada a Ermida das Necessidades no alto de Alcântara. “Pela mesma ocasião em que se construía esta nova Capela, era criada uma irmandade de marítimos de Alcântara, que passou a concorrer com o dinheiro necessário ao culto. Foi então que a célebre imagem recebeu o nome de Nossa Senhora das Necessidades, o qual dentro em pouco se aplicava também ao lugar.” (Carvalho, 1944, p. 4). Esta nova relação entre os marinheiros e o local de culto escolhido vem trazer uma perspectiva adicional no que toca ao significado místico desta paisagem de água que se via do alto da encosta — agora das Necessidades — sobre Alcântara e sobre as vistas profundas que dali se colhiam para a entrada dos barcos na barra.
A presença da ribeira de Alcântara, que aqui se encontrava com o Tejo, desapareceu no encanamento que se iniciou em 1887 com um primeiro troço, “desde a antiga ponte da rua Direita do Livramento para o sul até ao Tejo” (Vieira da Silva, 1942, pp. 92-93), e se terminou em 1949 para dar lugar à auto-estrada conhecida por “Avenida de Ceuta”.
Os projectos do final do século XIX para a construção do aterro, regularização das margens e canalização da ribeira de Alcântara afectaram drasticamente toda esta paisagem, passando a própria ribeira a designar-se por “caneiro de Alcântara”. A extensão do aterro trouxe um “ganho” de 900 metros ao rio, enterrando a ribeira e a baía redonda e fazendo desaparecer todo o conjunto, e assim do jardim das Necessidades já quase se não vê o rio, foi afastado e ficou sem expressão a vista para sul, quando antes o Tejo era uma presença forte, pintada em aguarelas e louvada por muitos visitantes.
Para poente, para o mar, a vista também sofreu alterações em 1960 quando se constrói a Ponte 25 de Abril para ligar Lisboa à margem sul. O permanente ruído que os carros produzem sobre as faixas metálicas da ponte é sentido em qualquer ponto do jardim das Necessidades, e veio introduzir danos consideráveis à sua quietude e beleza. Com os tabuleiros da ponte cortou-se também, e para sempre, a vista aberta do jardim para a barra do Tejo e para o mar a ocidente.
Hoje, a vista do conjunto das Necessidades na meia encosta virada a sul e a poente perdeu muita qualidade, quando antes oferecia os ingredientes necessários a uma obra régia do período barroco: expansão visual, em posição de dominância elevada sobre uma paisagem de água de excecional beleza.
A encosta das Necessidades beneficiava da localização sobre o eixo de circulação que ligava a cidade oriental à parte ocidental, até Belém, sendo a ponte de Alcântara o único ponto de entrada na cidade por oeste, ponto nevrálgico da segurança da cidade, que obrigou ao reforçar da sua defesa, logo após a restauração da nacionalidade em 1640. Por decisão de D. João IV, a linha de defesa da cidade iniciou-se assim por dois baluartes em Alcântara. Cruzando as funções religiosa e militar, estes tomaram os nomes da igreja e convento que já existiam na encosta (Padre Carvalho da Costa in Carvalho, 1944, p. 11); a norte o baluarte do Livramento, sobre parte do qual se construiu o convento do Livramento, a sul o baluarte do Sacramento, próximo do convento do Sacramento. Ainda hoje se vêem as grandes empenas laterais deste baluarte sul, que assentava sobre a água em parte destruído e dos quais restam os terraços que constituíram a base de suporte que iria, um século mais tarde, em 1742, servir de terrapleno à construção do palácio e convento das Necessidades. Foi preciso refazer mentalmente toda esta paisagem desaparecida para imaginar o lugar no tempo de D. João V e, deste modo, perceber as causas, para além do cumprimento do voto a Nossa Senhora das Necessidades, que levaram à escolha desta encosta para construir a obra do final da sua vida.
O interesse pelas encostas é estimulado também por Filippe Juvarra, arquitecto italiano que se distinguira já em Turim ao serviço do duque de Sabóia e que em 1719 é convidado a Lisboa por D. João V. «Foi recebido pelo Rei, que o trouxe na sua carruagem de seis mulas com dois criados de libré e com ele andou de carro a escolher sítio para a nova catedral. (Ayres de Carvalho, 1962, p. 334). Juvarra compreendeu o potencial das encostas de Lisboa como suportes ideais para uma paisagem esculpida em terraços, como pedestais para uma grande obra barroca de palácio e magníficos jardins descendo até ao Tejo. “Fizeram-se plantas para a nova patriarcal, para o novo palácio real com jardim, tapada para animais silvestres, escolhendo-se o sítio de Buenos Aires, lugar aprazível e saudável, ao de cima da colina que domina a cidade e descobre a entrada do mar, entre as duas fortalezas de S. Julião e do Bugio e toda a barra fora” (José de Castro in Ayres de Carvalho, 1962, p. 334). A visão de Juvarra foi apresentada e esboçada como uma solução passível de ser construída numa colina de Lisboa, e ao adaptar o projecto de um grande palácio, basílica e jardins ao acentuado relevo, óptima exposição e excelentes vistas para o Tejo Juvarra veio valorizar estas encostas, esboçando estudos onde germinavam já os traços de uma obra que teria levado ao expoente as magníficas qualidades da cidade de Lisboa - Os esboços encontram-se hoje na biblioteca de Turim. “O mais completo dos desenhos indica uma primeira disposição de grandes construções em U, com o corte da encosta em terraços que descem a colina aumentando o efeito de elevação, colocando o palácio e a basílica no topo e rematando o sopé com um grande cais sobre o rio.” (Castel-Branco, 1999, p. 30).
Uma das causas que justificou deixar cair em 1719 este projeto de grande rasgo para o palácio real de Lisboa para o sítio de Buenos Aires foi a falta de água, mas em paralelo com esta sucessão de factos históricos e dados seguros de condicionalismos de clima e relevo decorrem os acontecimentos menos previsíveis da vida do rei, que paralisa em 1742 e recorre a Nossa Senhora das Necessidades para lhe valer na doença. Os textos históricos são unânimes sobre a decisão do rei, que em acção de graças determina o aumento da ermida e a construção do palácio e convento sobre o local onde a Senhora das Necessidades vinha sendo adorada. Á decisão do rei, fervorosa e de carácter religioso, se associa a recomendação de Juvarra, que vinte e três anos antes para ali apontava o local ideal para construção do palácio real e patriarcal de Lisboa. O aqueduto era então já uma realidade, pelo que em breve ficaria superada a falta de água na colina desbloqueando o impedimento inicial para a localização do palácio real. Associado tanto à obra do aqueduto como à das Necessidades encontra-se o engenheiro Manuel da Maia. Para ambas as obras ele contribui “na extracção de desenhos no sitio de Buenos Ayres, de que apresentou a V. Mag. de hum modelo exacto de todo aquelle terreno irregular, e suas circumvesinhanças, de que por esta cauza se faz muy ardua a sua execução; ou fosse [...] na elleição do terreno para a conducção das Agoas livre, em que trabalhou desde o anno de 1728 ate ao de 1734 de sorte que não só desembaraçou a grande confuzão, em que aquella materia se achava, mas a reduziu ao mais verdadeiro, seguro, e conveniente methodo de coduzir agoas, de que não há outro exemplo” (Viterbo, 1988, pp.126-71). Uma vez construída a arcaria sobre o vale de Alcântara, a água chega á encosta nascente do vale de alcântara, tornando mais fácil a criação de um ramal propositado para as Necessidades, aproximando o sonho de construir na meia encosta um palácio-convento onde a água não faltasse. Documentam-se com bases sólidas as aquisições de D. João V dos terrenos pela encosta acima, desde 1742 a 1745, até atingir os 10 hectares que ainda hoje existem cercados pelo muro da Tapada das Necessidades.
O barroco nos jardins expressa-se por uma tensão criada pela dualidade de extremos opostos em que segundo Lewis Mumford “a perfeição dos planos rigorosos de ruas, [...] nos jardins ordenados geometricamente sobre a paisagem.” contracenam com “o lado sensual, rebelde [...] expresso no vestuário, nos comportamentos sexuais, no fanatismo religioso e num desvairado sistema político. [...]” (Mumford, 1979, p.351). Esta tensão contraditória teve em D. João V um fiel servidor, e o estilo barroco fica bem expresso na obra do palácio -convento de Mafra; dirigido de nascente para o oceano, o eixo barroco corta o altar da basílica numa simetria rigorosa, e cria uma tensão visível e bem cumprida em Mafra, com efeitos pesados de super-escala e desajuste entre a prática religiosa e a extravagância da corte barroca partilhadas num mesmo edifício. A experiência parece ter apontado para uma solução mais modesta na obra das Necessidades, mas a contradição mantem-se. Também aqui se constrói um palácio-convento, visando também o cumprimento de um voto, mas mais económico e reduzido; o Palácio das Necessidades não tem a grandiosidade do Palácio de Mafra, nem tão pouco a geometria de um eixo gerador aqui foi respeitada.
Foi preciso condescender e adaptar a obra à dimensão financeira do país, esgotado por Mafra, às tensões entre projectistas e à difícil topografia da encosta de Alcântara, já anunciada por Manuel da Maia. Assim, a obra das Necessidades completou-se com qualidade, mas com uma dimensão reduzida, e a falta de um eixo gerador de simetria a estender-se do palácio para os jardins. A relação de volumes do palácio, convento e igreja com o jardim não tem uma unidade geométrica, e a sua disposição mais facilmente se associa às villas quinhentistas construídas na meia encosta das colinas da Toscânia do que ao rigor axial que o estilo barroco marcara nos palácios e jardins na Europa.
O projecto inicial do jardim, da autoria de Custódio Faria, é uma mistura formada por partes que se articulam em redor de um lago e analisando em conjunto a planta do palácio-convento e jardins deixados por D. João V evidenciam-se elementos barrocos, soltos e sem uma unidade palácio-jardim que forme um todo. Vão sendo traçados entre o exterior e o interior do palácio os efeitos de um eixo que atravessa o centro da capela e termina no obelisco e fonte localizado no largo a sul, fora da capela. Trata-se de uma fonte com quatro cabeças a deitar água para uma grande taça recortada de boa escultura e que confirma a abundância de água, marcando com o obelisco as vistas para o Tejo.
Ligado ao rés-do-chão do palácio, remetem para o período de D. João V a rigorosa simetria de um parterre de broderie, a divisão dos canteiros de buxo cortados por caminhos de saibro e rodeados por um muro alto decorado de nichos com estátuas e um lago central recortado em pedra. Este parterre é virado a norte, ligado por uma escadaria de boa traça, que dá continuidade para o resto da quinta e levando do lado nascente ao pomar e à horta dos frades de limites irregulares. No centro gravítico da cerca, o traçado de um tridente define três alamedas no parque com direcção segura, mas atualmente pouco visíveis.
A partir da morte do Rei, é a prática agrícola da cerca do convento que domina todo o espaço, desde o horto conventual de dimensão medieval, ao laranjal de produção e ornamento na parte baixa de regadio, aos terrenos de semeadura de sequeiro, com o moinho de vento a assegurar a produção de farinha. Seriam os utilizadores desta obra régia a definir o destino desta intenção do barroco, e o futuro uso da quinta até à chegada em 1836 do jovem casal de monarcas D. Fernando e D. Maria da Gloria, altura em que o jardim ganha vida nova e vai ser “aggiornado” e adaptado ao novo estilo paisagista com traços românticos.
D. Fernando chama um jardineiro francês, Jean Baptiste Bonnard, que chega em 1841, e os trabalhos iniciais arrancam como numa verdadeira empreitada de “conceção-construção” registada a ritmo acelerado nas folhas de serviço e encomendas de material que se encontram no Arquivo da Casa de Bragança. <br/>
Para uma descrição que acompanha os vários períodos pode-se dividir os dez hectares da cerca em quatro áreas: a primeira constituída pelos dois parterres junto ao convento, planos, geométricos e ligados por escadarias; a segunda é a zona mais baixa da cerca, mais próximo do Tejo (quando o Tejo estava próximo) e de declive menos acentuado; a terceira, logo acima, mais inclinada, contendo o referido elemento gerador do traçado barroco, o lago circular e o início de um eixo central a um tridente; a quarta corresponde à zona superior da tapada, mais exposta aos ventos, mais íngreme, mais agreste e difícil de tratar.
Daquilo que encontrou o rei D. Fernando deixou intactos os terraços junto ao palácio e transformou a área sul em jardim paisagista pois dali se gozavam excelentes vistas sobre o rio e o novo traçado dos caminhos permitia ir descobrindo ao virar das curvas as perspectivas mais fundas sobre o Tejo e a barra. Edmond Goeze afirmou “Não é só a collecção das mais raras e bellas plantas que torna o jardim das Necessidades um objecto de atenção: o próprio jardim, pela artística disposição que tem, forma per si uma bella paisagem. Tudo está no seu logar, e a sciencia é alliada ao gosto mais apurado para produzir uma irreprehencivel perspectiva.” (Goeze, 1876, pp. 42-46).
A modelação de terreno que foi necessário executar permitiu a construção de lagos ao nível do chão, traçados em linhas naturais e rematados de pedra irregular e tosca. O maior tem uma ilha ao centro e em seu redor foram plantadas plantas ornamentais que ainda hoje se refletem sobre a água parada do lago. Do lado sul, a superfície de água manteve-se aberta ao reflexo do céu. Na parte poente desta zona plantaram-se pinheiros para cortar o vento, inimigo traiçoeiro dos jardins de Lisboa, e ciprestes que enquadravam a vista sobre o Tejo. O plano de plantação do rei ou do jardineiro é desconhecido, mas graças às imagens que nos chegaram, pintado por Cinatti para os medalhões do gabinete de trabalho do Rei e da Rainha dentro do palácio das Necessidades ficamos com uma ideia do efeito final daquilo que foi o jardim da família real na Quinta das Necessidades em Lisboa de oitocentos, para a qual concorreram a sensibilidade do rei a experiência do jardineiro em aclimatação de plantas e boa horticultura.
A terceira zona das Necessidades exigia uma intervenção mais drástica, e talvez por essa razão foi a última a ser executada; o declive da encosta natural ronda os 15 por cento e qualquer plantação ficaria sujeita à erosão e ao desagradável efeito da inclinação excessiva. Conhecimentos em topografia foram essenciais para mudar e suavizar o declive. A planta topográfica da tapada de 1878 apresenta acima dos terraços formais um muro de suporte com cerca de quatro metros de altura que permitiu a criação de uma parte plana para uma clareira relvada e aberta ao sol: o grande relvado triangular com meio hectare que tem um suave declive. Desta intervenção não há registos senão das horas dos trabalhadores indiferenciados entre tantos outros trabalhos, mas o aterro e escavação que foram executados revelam um grande saber na modelação e escultura da paisagem. De cada lado deste muro duas construções o rematam; a estufa circular em estrutura de ferro já construída no tempo de D. Pedro V e uma casa de fresco recoberta por um lago cuja função não é bem clara.
A parte superior da Tapada, hoje coberta de zambujeiros e defendida por linhas serradas de ciprestes e pinheiros ao longo do muro, não revela o cuidado de ornamento que as anteriores apresentam. O moinho, prévio à construção do muro para tapada em 1742 foi mantido, o túnel onde corre a mina de água que alimenta a mãe-d'água não foi alterado, e os caminhos muito inclinados não foram trabalhados para maior conforto. Manteve-se esta área florestada dentro da Tapada como uma mata de vegetação natural para os passeios a cavalo e para as aves e os corsos que vieram completar um ambiente seminatural.
A Quinta Real em Lisboa com assim se ficou a chamar durante a permanência da família real foi viveiro onde cresceram os príncipes, filhos de D. Maria II num contacto vivo com a natureza marcando a família real durante as seguintes gerações, viveiro também de jardineiros que dali saíram para outras quintas, tapadas e jardins, viveiro ainda de centenas de espécies que ali se aclimataram e reproduziram para povoar parques e jardins de todo o país, os terrenos das Necessidades receberam em primeira mão a marca deste novo gosto trazido por D. Fernando.
No entanto, aquilo que hoje se observa na Tapada das Necessidades já não é a obra paisagística que o rei nos deixou. O seu restauro e limpeza para recuperar os cenários criados por D. Fernando e por Bonnard e eternizados em aguarelas, pinturas, e descrições são urgentes para homenagear o primeiro jardim paisagista em Lisboa.
O palácio das necessidades e tapada encontram-se classificados como Imóvel de Interesse Público e Zona Especial de Proteção segundo o Decreto n.º 8/83, DR, 1.ª série, n.º 19 de 24 janeiro 1983 e Portaria n.º 552/96, DR, 1.ª série-B, n.º 232 de 07 outubro 1996, respetivamente. Parcialmente incluído na Zona de Proteção do Aqueduto das Águas Livres (v. IPA.00006811)
Inventário: Adaptado de ALBUQUERQUE, João; AZAMBUJA, Sonia; CASTEL-BRANCO, Cristina (Coord.) – Necessidades: Jardins e Cerca. Lisboa: Livros Horizonte/Jardim Botânico da Ajuda, 2001.
Revisão: Cristina Castel-Branco, 2020.
Tapada das Necessidades
(Consultada em 2001 e Abril de 2020)
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