Cerca do Convento de São Paulo
Lisboa | Setúbal
Cerca do Convento de São Paulo
Com uma área de 46ha, a cerca do Convento de S. Paulo situa-se na fronteira entre o concelho de Setúbal e Palmela. Foi construída “[…] na encosta de uma colina verdejante e pitoresca, cuja raíz orla o viçoso e aprazível vale, que se estende entre aquela povoação [de Setúbal] e a de Palmela […]”. Esta encosta descrita por Almeida de Carvalho (1970) corresponde à Serra dos Gaiteiros no conselho de Palmela, composta por três linhas de relevo bem vincadas na paisagem com orientação ENE-WSW.
A cerca chega à cota de 238 metros, que corresponde aos pontos mais elevados da Serra dos Gaiteiros, onde os declives são muito acentuados, superiores aos 25%, com solos insipientes. A zona agrícola, que desde cedo atraiu a fixação de gente, situa-se a meia encosta, em redor do conjunto edificado, exposta maioritariamente a Sul e a Este, onde os solos apresentam uma maior aptidão agrícola. O clima é ameno, apresentando uma pluviosidade média e amplitudes térmicas atenuadas, sem grandes oscilações anuais, o que faz com que a Cerca do Convento beneficie de condições bioclimáticas vantajosas que permitem a exploração agrícola, sendo a cerca famosa pelas suas laranjas de ótima qualidade. Nos meses mais secos, a disponibilidade de água era assegurada por um intricado sistema de captação de água, existindo vestígios de canalização antiga de distribuição das águas de nascente, que corriam por uma rede de canais e eram encaminhadas a fontes, poços de armazenamento e tanques de distribuição.
A qualidade da paisagem envolvente da cerca veio trazer a este espaço uma mais valia reconhecida pela sua inclusão no Parque Natural da Arrábida (PNA) como reserva paisagística.
A cerca envolve dois conventos que pertenceram às Ordens de S. Paulo e Capuchos. O Convento de São Paulo, formalmente designado por antigo Convento de Nossa Senhora da Consolação dos Frades da Ordem de São Paulo, de Alferrara, é um monumento de c.1383, hoje em processo de reabilitação, visitável desde 2017 mediante marcação, depois de meio século em ruínas. Desfruta-se no convento de uma vista panorâmica que desce desde a serra da Arrábida até à cidade de Setúbal, estendendo-se através do estuário do rio Sado e península de Tróia.
Dentro da mesma cerca de S. Paulo, existe um segundo convento, o Convento dos Capuchos, formalmente designado, como Convento de Nossa Senhora da Conceição dos Frades Franciscanos Capuchos de Alferrara, construído em 1578 e reconstruído em finais do século XVII, hoje em ruínas sem perspetiva de reabilitação devido ao seu estado avançado de degradação.
A data da fundação do Convento de São Paulo por Mendo Gomes de Seabra, também conhecido por Mend'Oliva, não é consensual entre os diferentes autores, não obstante, tudo leva a crer que a sua fundação remonte a 1383 "como se mostra por huma escritura feyta em Palmela por Lourenço Giraldes Tabelião […]” (Costa, 1712, p. 304).
Mend'Oliva, foi um dos mais valorosos e leais capitães do exército português nas lutas contra D. João I de Castela, acompanhando desde sempre D. Nuno Alvares Pereira nas campanhas gloriosas daquela época, "e quando vira a pátria livre e triunfante, seguindo o exemplo do ilustre condestável, largara as armas e o mundo, vestindo o burel, esquecendo os homens, para só de Deus se lembrar" (Carvalho, 1970, p.59). Uma honrosa menção num alvará de D. Duarte distingue Mend'Oliva pela sua distinta carreira de militar (Leal, 1880, p. 251).
O convento ficou desde logo sujeito aos Eremitas da Serra de Ossa, Ordem com sede no Alentejo, para que gozasse das suas imunidades e privilégios. Terá sido D. Duarte quem primeiro lhe concedeu privilégios e isenções seguindo-lhes outros concedidos pelo Papa Pio XII e D. Afonso V, os quais foram depois confirmados e ampliados por D. João II e seus sucessores.
Desde cedo cria-se um mito à volta da Nossa Senhora da Consolação, que se encontrava dentro da capela de embrechados (Capela de N. Senhora dos Remédios ou Capela da Fonte Santa), de que esta teria aparecido sobre a fonte e que esta transmitia à água propriedades milagrosas.
Com o terramoto de 1775, ficou este convento bastante danificado e quase irremediavelmente destruído (Fortuna, 1982); no entanto, em 1758, já se encontrava em reedificação (Costa, 1712, p.305).
No princípio do séc. XVIII, residiam aqui vinte e cinco religiosos (Costa, 1712, p.305). Em 1808 os frades abandonaram o convento em virtude das invasões francesas em Setúbal e Palmeia, pois, o exército ocupante estabeleceu aí uma bateria e algumas tropas. Desde então, apenas teve um ou dois padres para conservação do edifício e da igreja (Carvalho, 1970, p. 66), existindo 4 padres a 17 de outubro de 1833 (Ministério dos Negócios Eclesiásticos, 1834).
Com a extinção das ordens religiosas em 1834, muitos conventos, nas zonas rurais, foram comprados por famílias burguesas, tendo os das zonas urbanas sido transformados com frequência em hospitais, quarteis e liceus. Nesse mesmo ano, foi este convento, em conjunto com o dos Capuchos, colocado em praça e comprado(s) pela família O'Neill "que melhorando-a e cultivando-a a tornou numa rendosa quinta" (Leal, 1880, p. 251). Desde então os dois conventos nunca mais deixaram de fazer parte integrante da mesma propriedade.
Em finais do séc. XIX, parte do convento de São Paulo está acomodado a habitação particular (Pimentel, 1879, p.175), esta situação mantém-se até à aquisição da quinta pela AMDS (Associação de Municípios do Distrito de Setúbal) nos anos 80, com os seus 46 ha, a quem se deve o restauro do Convento de São Paulo, reaberto ao público em 2017.
Descobre-se a Quinta de São Paulo perto do sítio de Alferrara, no prolongamento da Estrada das Machadas, “para lá chegar sobe-se do vale por uma turtuosa ladeira […] calcetada de pedra, guarnecida dos lados por altas e grossas paredes de alvenaria, que sustentam os taludes de terra, e tornam mais cómodo e seguro o caminho dos transeuntes.” (Carvalho, 1970, p.78).
No cimo desta ladeira surge a igreja, “no meio do edifício, fazendo frente para uma varanda com os seus taludes […]” (Carvalho, 1970, p.78). Na varanda, ladeando a igreja, surgem os edifícios das celas, que em tempos abrigaram também os dormitório, cozinha e oficinas. A igreja, precedida de escadaria, era de modesta fábrica, de uma só nave de abóbada, com fachada adornada por uma cornija e encimado por janelão gradeado.
“O claustro é quadrado, com três arcos de alvenaria por banda, que assentam sobre quatro colunas de mármore de ordem dórica. Nos cantos ou ângulos de cada lado está uma pilastra; junto a cada uma destas uma coluna, que são as duas dos lados, e no meio outra, que assim sustêm e formam os três arcos por cada banda do claustro. O pavimento era tijolo, e as paredes revestidas de azulejos […]” (Carvalho, 1970, p. 66), hoje desaparecido. Segundo Almeida de Carvalho em 1970 “No centro do claustro ainda vimos algumas árvores e vergônteas de buxo”, que em 1996 seriam já grossas árvores, hoje em dia a vegetação foi limpa para dar lugar a um terreiro revestido a saibro contornado por um canteiro estreito revestido a calhau rolado branco, que se alarga pontualmente em frente a cada coluna dórica, para formar um quadrado onde recebe uma talha de barro. Daqui têm-se acesso ao terraço miradouro que corre sobre as arcadas do mesmo claustro, através de uma escada que se pode encontrar no seu canto sul. Daqui obtém-se uma vista magnífica amplamente elogiada, sobre a qual no início do séc. XVIII Américo Costa escreveria o “miradoiro” do Convento de São Paulo “olha para um deleitoso valle, povoado de muitas ricas quintas, grandes arvoredos e amenas hortas em muita abundância de cristalinas águas; e sobre a vista aprazível d’quele formoso painel e faz mui agradável a villa, e porto de Setúbal, a Serra da Arrábida, que aos olhos se lhe convida, e se mostra dilatada, e alegre na variedade de horizontes.” (Costa, 1712, p.304).
Sobre o jardim que existiu até meio do séc. XX nos terrenos em redor do convento de São Paulo, diz-nos Cabral Adão “(…) os olhos andam pelas manchas escarlates das buganvílias que trepam no canto dos passadiços, outrora cobertos de latadas, dando túneis de frescura onde o calor de Junho mal poderia romper, nalguma lufada rateira, sub-reptíca … E os olhos afagam as copas dos pinheiros da encosta, que esverdinham fontes de rama no arroxeado encosto do mato rasteiro. E os olhos descansam na variedade colorida das sardinheiras, das romãzeiras, na pureza singela dos jasmins, trepando as pilastras do pátio, delicadas na volúpia de se entrelaçarem com a ramagem de uma roseira ‘bela portuguesa’, que atinge o alpendre do primeiro andar […]” (Adão, 1953, p. 99). Outro texto, este de 1728, vem comprovar que uma horta ajardinada já existiria no séc. XVII “Chegando o anno de 1620, veyo o sacristão dos Padres Observantes ao nosso, procurar algumas flores para ornato da sua igreja […] Ensinou ao cozinheiro como devia trazer a cozinha porque a esfregou, e cayou, ornando-a de flores, e ramos de murta, que colhia pela horta e na cerca” (Piedade, 1728, p 951 e 963). Ainda hoje em dia se encontra um maior número de espécies não endógenas, com função ornamental, na área junto aos dois conventos, sob a forma de nespereira, figueira, pimenteira bastarda, olaias, jacarandás, choupo branco, cipreste e romãzeira.
As notícias mais antigas de que há memória falam-nos também da existência de um olival no espaço onde se encontra hoje o Convento dos Capuchos: “Sendo preciso, para melhor comodo do convento, o ocuparse huma terra com as suas oliveiras, que era dos Padres Paulistas.” (Piedade, 1728, p. 540). Hoje, a bordejar os limites das áreas de pomares de citrinos, encontram-se inúmeras sebes de catos. Para assegurar a manutenção desta paisagem fértil e a instalação dos pomares de laranjeiras, conhecidas como as melhores da região, foi determinante, para o Convento de São Paula, a abundância de água da serra, que era captada, conduzida e armazenada através de um robusto sistema de distribuição de água.
A água para abastecimento do Convento era captada por uma nascente que existia a montante do mesmo, com “recargas subterrâneas” de um poço/cisterna com cerca de 10m de profundidade e 10m de diâmetro existente a Noroeste, do outro lado da linha de água. Depois de captada, era conduzida por galerias e distribuída em função da sua utilização: para o tanque de rega dos citrinos e funcionamento da azenha; para adução de água à Fonte da Mina, Capela da fonte Santa e outras fontes presentes no convento; e alimentação do sistema para saneamento do edifício conventual onde existiam as latrinas. Uma outra captação a NE abasteceria o convento de água potável.
A função de distribuição da água era executada por caleiras, regadeiras, minas e condutas em cerâmica ou metálicas enterradas ou à superfície. O som da água corrente ao longo destas estruturas é referido por Cabral Adão descrevendo a última das minas ainda em funcionamento no concento dos Capuchos “ainda há o murmúrio doce da água, correndo, abundantemente, na caleira que desce da nascente dos capuchos, a afirmar o bem-estar do sítio […]” (Adão, 1953, 91 e 98).
A água adquiria também funções decorativas, abastecendo pequenas fontes e casas de frescos destacando-se a Capela de N. Senhora dos Remédios, também conhecida como Capela da Fonte Santa, ou “casa de fresco” da Fonte Santa, uma pequena capela totalmente decorada de embrechados, localizada do lado oposto à igreja, e precedida de uma alameda. "Ali se pedia a intercessão da Virgem, representada em imagem de terracota, para a cura do zagre, dermatose infantil da cabeça e do pescoço, seguida, a prece, dum mergulho na fonte da mina, que brotava logo adiante. A fama, que foi extensa e duradoira, extinguiu-se, porque a fonte secou há muito" (Adão, 1953, p. 102).
A meia encosta entre o Convento de São Paulo e o espaçoso terreno outrora ocupado com citrinos, restam ainda as grossas paredes em pedra da antiga azenha, sendo ainda visíveis algumas estruturas ligadas à sua função ancestral, tal como o poço, a roda hidráulica motriz, e a abertura na parede destinada à passagem do veio que ligava a tal roda com o mecanismo interior da azenha.
Texto: Adaptado do Relatório do Trabalho de Fim de Curso de Arquitetura Paisagista de Telmo Figueiredo de Albuquerque Pina, “Análise dos sistemas Hidráulicos Antigos Conventuais de S. Paulo e dos Capuchos - Stúbal”, apresentado no Instituto Superior de Agronomia, com a orientação do Eng.º José Manuel Mascarenhas. 1996
Adaptação: Guida Carvalho – 2020.
Revisão: Cristina Castel-Branco – 2020.
Cerca do Convento de São Paulo
(Consultada em 1996 e Abril de 2020)
ADÃO, Cabral – Flores do Rio Azul: Paisagens da região de Setúbal,1953.
CARVALHO, Almeida de – Acontecimentos, Lendas e Tradições da Região Setubalense. Setúbal, Junta Distrital de Setúbal, 1970.
COSTA, Padre António Carvalho da – Corografia Portugueza, e Decripçam Topográfica do Reyno de Portugal. Tomo III. Lisboa: Na officina de Valentim da Costa Deslandes, 1712.
FORTUNA, A. Matos – Monografia de Palmela: Memórias paroquiais de 1758. Lisboa: Livraria Castro e Silva, 1982.
LEAL, Augusto Pinho – Portugal Antigo e Moderno. vol. VI. Lisboa: Livraria Editora de Mattos Moreira & C.ª, 1875.
LEAL, Augusto Pinho – Portugal Antigo e Moderno. vol. IX. Lisboa: Livraria Editora de Mattos Moreira & C.ª, 1880.
MINISTÉRIO dos Negócios Eclesiásticos, março 722, nº11 (1834).
PIEDADE, Fr. António da – Espelho de Penitentes e Chronica da Provincia de Santa Maria da Arrabida. Tomo1. Lisboa Occidental: Joseph Antonio da Sylva Impressor da Academia Real, 1728.
PINA, Telmo Figueiredo de Albuquerque. – Análize dos Sistemas Hidraulicos Antigos Conventuais de S. Paulo e dos Capuchos – Setúbal. Lisboa: Instituto Superior de Agronomia da Universidade Técnica de Lisboa, 1996. Relatório do Trabalho de Fim de Curso de Arquitetura Paisagista.
PIMENTEL, Alberto – Memórias Sobre a História e Administração do Município de Setúbal. Lisboa: Typ. de G. A. Gutierres da Silva, 1879.
https://quinta.amrs.pt/conventos.html
http://www.monumentos.gov.pt/Site/APP_PagesUser/SIPA.aspx?id=10469