Jardins do Palácio de Belém
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Jardins do Palácio de Belém
O palácio de Belém encontrava-se junto à linha de contacto das águas do Tejo com a terra na margem direita do rio, sobre um terraço construído num outeiro junto praia de areia, banhada pelas águas do Tejo. Hoje em dia um aterro já centenário separa-o do rio, mas a primeira imagem do palácio de Georgius Braunius e dos jardins que data de 1572 revela-nos a beleza do conjunto com o palácio abraçando os jardins em terraços que alguns diziam suspensos sobre as águas do rio, defendidos do vento Norte pela colina da Ajuda. A poente e atrás do palácio vê-se uma torre e construções sem qualquer distribuição geométrica; sinais de um passado medieval ainda tão próximo. Em frente, na outra margem, a encosta escarpada da Trafaria reflete-se no rio, e este, num lento movimento de marés e correntes, sempre diferente como um espelho azul-verde, acinzentado, refletindo o céu. Da barra, a poente entram as brumas trazidas pelo ar fresco do mar. O lugar é naturalmente privilegiado e foi cedo escolhido para a construção de um palácio e jardins. Mais tarde o terramoto de 1755 reforçou essa boa escolha pois o palácio não caiu com o abalo.
“Mal se entra no Tejo, cuja foz se alarga mais de duas milhas, vê-se uma aldeia, chamada Belém, onde o rei tem vivido sempre desde o terramoto, porque o seu palácio na cidade foi por aquele tremor de terra inteiramente destruído. Quem do rio vê Belém e as tantas casas que servem de residência aos príncipes de sangue, ao Patriarca, aos ministros estrangeiros e aos pricipais senhores deste reino, já se não lembra de espectáculos que, lhe tenham contentado mais a vista do que este” (Baretti, 1970, p. 59).
Uma primeira referência ao conjunto renascentista edificado sobre este lugar de excepção data de 1726; é a famosa Carta de Padrão e a escritura de venda datadas do mesmo ano, sendo eu a ]ultima apresenta a história da propriedade desde o seu início com a escolha do lugar e definição dos limites por D. Manuel de Portugal (que arrenda em 1559 ao mosteiro dos Jerónimos um prazos) até à famosa compra por D. João V pormenorizadamente descrita e causa da Carta de Padrão. Os jardins de D. Manuel de Portugal, assim registados em meados do século XVI e desenhados no final desse século, ilustram os primórdios da arte paisagística do renascimento português e marcam também o início da história do palácio e quinta de Belém.
Mais tarde, em 1680, a quinta de D. Manuel de Portugal e outra área próxima, também arrendada aos Jerónimos por D. Jorge de Mascarenhas, constituída por «uma quinta e uma terra de pão» serão unidas, passando a ter 0.6 ha e a fazer parte do Morgado dos Corte Reais, designando-se o todo por Quinta de Baixo. Fica assim criada uma unidade cercada e alimentada por água, vinda de várias nascentes e minas da encosta da Ajuda e recolhidas em várias arcas de água que alimentarão as fontes e tanques de rega do jardim, que passa a envolver o palácio e a estender-se para todos os lados.
Nessa altura o proprietário é D. João Tello de Menezes, Primeiro Conde de Aveiras e vice-rei da índia de 1640 a 1645. Assistimos na Quinta de Belém a um novo investimento nos jardins, que deixará a marca do século XVII: largos terraços, efeitos monumentais de construções próprias dos jardins da aristocracia francesa, fontes, casas de fresco e estatuária vinda de Itália, vêm enriquecer e aggiornar o antigo paço renascentista, rivalizando já com as outras quintas e palácios construídos ao longo desta esplêndida margem esquerda do Tejo.
À beleza deste sítio associava-se ainda a forma como até lá se chegava, descendo de barco o rio e descobrindo nas praias e enseadas os palácios, até se desvendar com um intenso significado espiritual e histórico aquela praia donde partiam os barcos para fora da barra do Tejo, para lá do Bugio, e onde D. Manuel I havia mandado construir a igreja e mosteiro dos Jerónimos.
Belém é a primeira visita que Filipe I (Filipe II de Espanha) faz quando se instala em Lisboa. Nas cartas, escritas de sua mão em Portugal (Bouza&Alvarez, 1998, p. 46), revela a curiosidade de um rei que possuindo quase metade da Europa é atraído e se interessa por Belém, descendo até lá no bergantim real. Filipe I assiste à missa no mosteiro de Belém, no dia 24 de Junho de 1581, e escreve “[…] nos embarcamos a la manana y fuimos a Belém, una buena legua de aqui, de la otra parte del rio más abajo de Lisboa, y alli oimos misa cantada y comimos y despues vimos la casa en que hay buenas cosas, y despues oimos vísperas en el coro y nos fuimos a embarcar en un barco y entramos y vimos la Torre de Belém que está dentro del rio” (Bouza &Alvarez, 1998, p. 46).
Com toda esta carga histórica acumulada num lugar, é claro que Belém passou a ser desde aí até aos nossos dias um destino frequente, tanto para assistir a missas como para observar a actividade ligada ao mar, gozando a vista de uma soberba paisagem de água e celebrando um acontecimento impar: o momento de saída das caravelas em demanda de outros mundos, e o momento de chegada dos heróis carregados das novidades e riquezas doutros povos.
A qualidade natural da paisagem irá atrair, durante os séculos XVII e XVIII, para além do palácio e jardins dos Condes de Aveiras, ou Quinta de Baixo, (atual Palácio e jardins de Belém), a Quinta do Meio, pertença dos Condes da Calheta (e designada por Palácio do Pátio das Vacas), a Quinta de Cima, dos Condes de Óbidos e chamada também Palácio do Meirinho-mor. Para poente, para o lado de Pedrouços, o Palácio dos Duques de Cadaval e dos Marqueses de Borba e logo a seguir ao mosteiro a famosa Quinta da Praia, dos Condes de Sabugosa, e na praia do Bom Sucesso o Palácio do Correio Mor, pertença dos Marqueses de Penafiel.
No ano de 1726, para além da compra da Quinta dos Condes de Aveiras registada na Carta Padrão, todas as propriedades e quintas que se tinham instalado pela encosta acima de Belém até à ermida de Nª Sra. da Ajuda, confluem pela mão de D. João V inesperadamente para a posse da coroa, como se em vista estivesse um grande projecto a implantar em toda a encosta. Nesse ano, Mafra era ainda um convento para 200 frades e ia lenta a construção. Pairavam no ar as ideias de D. João V para a Patriarcal de Lisboa, visão do rei passada à pena pelo genial Juvarra, arquitecto italiano vindo a Lisboa em 1719, mas do qual infelizmente nada se construi (Ayres de Carvalho, 1962, p. 334).
Depois de se apaixonar pelas colinas de Lisboa, Juvarra apresenta os primeiros esboços para o Palácio e Patriarcal de Lisboa (Estes desenhos encontram-se na Biblioteca de Turim, e apresentam alternativas para a disposição das grandes construções), tirando partido pleno de uma implantação que podia ser em qualquer colina de Lisboa. O desenho mais pormenorizado apresenta grandes construções em U no topo da colina, e jardins em terraços descendo até um cais monumental entrando Tejo adentro. Colocando o palácio e basílica no topo o efeito obtido é grandioso, assente na visão de uma obra una, a marcar a presença real em Lisboa e tirando pleno partido das extraordinárias qualidades paisagísticas destas encostas viradas a Sul, sobre o rio.
Para a história do Palácio da Belém esta informação confirma-nos a vontade do Rei D. João V em localizar na encosta que desce da Ajuda até Belém o seu grande palácio e jardim barroco, que seguiam de perto a receita dos jardins absolutistas de Versailles; palácio e jardins projectados em conjunto, seguindo um eixo de simetria que se prolongaria pelo Tejo. Infelizmente para Belém, o Rei muda de prioridades e volta-se para Mafra decidindo festejar os seus 41 anos na basílica de Mafra a 22 de outubro de 1730. Para tal toda a mão-de-obra, investimento e energia são canalizados para Mafra e o projeto de Juvarra e as propriedades de Belém que lhe iriam oferecer uma excecional localização são esquecidos para sempre.
Com o terramoto de 1755 nova luz volta a dar vida a Belém, tornando célebre a Quinta Real de Baixo (Palácio de Belém), por nela se encontrar o rei D. José e a família real no dia em que o terramoto, marmoto e fogo destruíram Lisboa.
Os palácios de pedra, manifestas certezas de protecção contra os elementos já não ofereciam garantias, o medo da instabilidade da cidade e de todas as construções em pedra espalhou-se e o rei manteve-se em barracas na zona de Belém na qual a destruição tinha surpreendente e felizmente sido menos marcante.
Cedo se percebeu que diferentes níveis de destruição se verificavam em Lisboa: enquanto na parte ribeirinha e oriental de Lisboa e núcleo do castelo, os edifícios ficaram totalmente desfeitos, sobre a zona ocidental, para além de Alcântara, as construções, incluindo o aqueduto das Águas Livres acabado de construir, o convento de S. Domingos de Benfica, o Palácio dos Marqueses de Fronteira e os palácios e quintas dos Condes de Aveiras, dos Condes de Óbidos, dos Condes da Calheta, o mosteiro dos Jerónimos, as ermidas de S. Jerónimo e de Sto. Amaro, a Torre de Belém, o Palácio da Praia, o convento do Bom Sucesso, mantiveram-se de pé.
De facto, a cidade de Lisboa apresentava-se desigualmente destruída e as causas destes efeitos diferentes de zona para zona eram desconhecidas. O registo dos diferentes resultados do tremor de terra de 1755 foi mandado fazer pelo Marquês de Pombal; trata-se de um levantamento por freguesias que constituí uma boa base de dados científica, dos destroços efectuados por um sismo. Já no século XX, estes dados foram estudados por Pereira de Sousa servindo para registar a força das ondas sísmicas nas diferentes partes de Lisboa e a resposta das camadas geológicas sobre as quais a cidade foi sendo construída.
Os basaltos que correspondem ao Complexo Vulcânico de Lisboa constituem a Serra de Monsanto, com 228m de elevação são na Carta geológica cortadas abruptamente pela linha do vale de Alcântara onde se iniciam as manchas de arenitos, areolas, calcários não consolidados e sobre as quais assenta a zona ribeirinha, e os vales da avenida da Liberdade e Almirante Reis, estendendo-se até Benfica e Portela. A diferença geológica entre as duas zonas contribuiu para poupar os edifícios construídos sobre o manto basáltico de Monsanto. Nos trabalhos de Pereira de Sousa, das zonas consideradas “bem livradas” vem sempre à cabeça a freguesia de Nª Sª da Ajuda, e foi aqui que D. José aceitou permanecer em Lisboa construindo para a família real uma efémera construção em madeira, a Real Barraca.
Para além desta singularidade decorrente do substrato geológica da encosta da Ajuda e Belém, uma outra vantagem acrescenta valor às qualidades do lugar: na interface do basalto com o calcário surgem nascentes que levaram desde o neolítico à instalação de populações humanas em Monsanto. Temos notícia da nascente de água na encosta da Ajuda através de uma publicação de 1726 “Em que se dá notícia das Águas de Caldas, de Fontes, Rios, Poços [...]» do país. Nesta obra é referido “Perto do lugar de Belém, termo de Lisboa Ocidental [...] na Quinta de Pedro Vasconcellos, está uma fonte de excelente agoa, cristalina, leve, delgada e de bom gosto [...]” (Henriques, 1726, p.174). Para os jardins e quintas esta presença de água em quantidade para as fontes, os repuxos e os lagos era determinante da escolha do local e certamente pesou na quantidade de jardins que se foram instalando na encosta da Ajuda e que terminavam na Quinta de Baixo, (agora jardim botânico tropical) na qual a água, como veremos terá um papel essencial para a beleza do jardins.
No final de Quinhentos, a ideia iniciada pelas grandes famílias da Toscânia, de procurar no campo um sossego confortável para construir a sua villa encontra em Portugal na palavra quinta uma completa tradução, e no período dos descobrimentos renascentistas uma réplica do momento em que os Medicis construíram em redor de Florença as suas ville, que transcendendo o modelo medieval se projectaram segundo uma geometria clara e uma unidade que se estendia da casa ao jardim e do jardim à vista da paisagem.
A Quinta de Belém, mandada construir em 1559 por D. Manuel de Portugal, enquadra-se nos padrões renascentistas, tanto pela forma construtiva como pelo perfil do seu “inventor”. Homem culto, nascido por volta de 1525, mecenas em plena idade de ouro de Portugal e de quem D. António Caetano de Sousa regista “foi bom filósofo, cortesão e entendido, excelente poeta, e os merecimentos próprios lhe puderam segurar melhor fortuna, porque teve mui pouca no adiantamento de sua Casa”.
A primeira referência à construção que se vai fazer nesta margem do Tejo e lugar de excepção, a que D. Manuel I havia chamado Belém, é de 1559 (Carta de Padrão da Venda da Quinta de Belém). Nessa data, o Mosteiro dos Jerónimos arrenda a D. Manuel de Portugal um terreno “composto por vinte e oito chãos (terras planas) e um Outeiro nos quais chãos e Outeiro estão feitas as casas principais, e parte da cerca e jardins”. A villa de D. Manuel de Portugal, que de acordo com esta fonte documental, inclui casa, jardim e terrenos, encontra-se assim registada desde meados do século XVI, fazendo parte dos jardins renascentistas portugueses precedidos por outros já célebres na altura: a Quinta da Bacalhoa, na Vila Fresca de Azeitão, mandada construir para celebrar a grande figura de Afonso de Albuquerque, e a Quinta da Penha Verde, mandada construir por volta de 1530 por D. João de Castro em Sintra, em memória da sua viajem à Índia. Nestas quintas esculpidas em terreno português, e seguindo agora os cânones do renascimento italiano, o jardim é ainda memória viva do encontro do Oriente com o Ocidente. No caso dos arredores de Lisboa chegava-se a estas quintas por água nos fáceis trajetos que oferecia o Tejo ou pelas valas com a vala real que prolonga o rio Coina por onde se navegava até bem dentro do território. É desta forma que a margem do Tejo da Junqueira a Belém, se vai encher de quintas com casas apalaçadas que seguindo os padrões construtivos de Itália se vão deliciosamente adaptar ao local.
No que toca a jardins, as adaptações introduzidas pelos portugueses - ou seja as excepções aos cânones construtivos vindos da Toscânia e da Campagna Romana – são equivalentes às regras adoptadas. No caso da Quinta de Belém três características distanciam a construção do modelo italiano evidenciando-se da seguinte forma: escassez de água, abertura de vistas para um plano de água de excecional beleza, proximidade da via de comunicação pelo rio. Enquanto as nascentes na Toscânia permitiam efeitos grandiosos em fontes, repuxos e permanência da água em enormes lagos, em Belém a água era recolhida por minas subterrâneas abertas no basalto da encosta e cuidadosamente conduzida para fontes de reduzido efeito e depois para rega. A presença da água como elemento da composição estética do jardim passava bem mais pela vista para o grande plano de água do rio que deste local, bem escolhido por D. Manuel, se gozava e que levou a que em vez de se construir na meia encosta, como acontecia nas colinas da Toscânia ou em Frascati, se tornasse preferível construir na margem do rio. O rio era também a melhor via de comunicação entre Belém e o Terreiro do Paço, onde residia o Rei.
No entanto, na essência da sua composição, a Quinta de Belém mantém importantes sinais e semelhanças com as obras renascentistas da Toscânia, tornando-se estes mais evidentes quando comparados com as que foram construídas no final do Quatrocentos, tal como a Villa Medici em Fiesole: a dimensão e unidade casa-jardim são similares e no caso de Belém surgem claras na gravura de 1572, já atrás referida. Acresce ainda que ambas são pertença e obra de membros eruditos da aristocracia.
Tanto em Belém como em Fiesole a casa abre sobre um terraço esculpido na encosta graças a um muro de suporte que assenta sobre outro terraço. Para os rematar e ligar as pérgulas, escadarias e balaustradas respeitam um desenho geométrico no qual se planeou o jardim em simultâneo com a casa. Como local favorito de Lorenzo de Medici, a villa de Fiesole transforma-se num centro de produção literária e aqui se “juntam para contemplação e discussão os membros da sua querida Academia neo-platónica - Marsilio Ficino, Poliziano, Pico della Mirandola, Landini” (Carta de Padrão da Venda da Quinta de Belém, p. 61). Lorenzo nunca será esquecido como mecenas pelos artistas florentinos, assim também de D. Manuel de Portugal temos uma notável obra literária e a Ode que Luís de Camões lhe escreve (Camões, L. Lírica, Ode VII A D. Manuel de Portugal.) é bem clara quanto à sua atividade de Mecenas.
Quando a Quinta de Belém foi construída tem D. Manuel cerca de quarenta anos. “D. Manuel terá nascido pela mesma altura de Luís de Camões (...) Segundo Caetano de Sousa, D. Manuel morreu muy velho (...) Durante a sua longa existência, D. Manuel privou com os reis e príncipes (...) teve grande intimidade com o príncipe D. João, herdeiro de D. João III, uma vez que D. Francisco de Portugal era o camareiro-mor do príncipe” (Fardilha, 1991, p. XV).
D. Sebastião confia em D. Manuel, enviando-o como embaixador a Castela. Mais tarde, a oposição a Filipe II custou-lhe o isolamento da vida política, um grande desencantamento da corte e o recolhimento à sua Quinta de Belém.
Foi casado duas vezes e teve quatro filhos, dois dos quais morreram com D. Sebastião em Alcácer Quibir. A sua grande paixão foi D. Francisca de Aragão, camareira da rainha D. Catarina a quem dedicou muito da sua obra poética, ainda por publicar, dispersa por várias bibliotecas em manuscritos cuja qualidade levou a que se confundissem com a obra de Camões. A amizade e a troca de expressões poéticas entre D. Manuel e Sá de Miranda ficam registadas em poemas. Tanto Lorenzo como D. Manuel constituem modelos do perfeito homem do renascimento, ligados ao poder e à cultura, cercados de amigos eruditos nas várias áreas das letras e das artes, e vivendo todo este ambiente de animada troca intelectual nos seus palácios magnificamente localizados e envoltos em jardins por onde se passeava conversando. É esta, pois, a riquíssima origem renascentista da Quinta de Belém.
A faceta mística de D. Manuel deixará também a sua marca na quinta de Belém, acrescentando-lhe mais um elemento fora dos cânones da villa renascentista; uma ermida e celas para os frades franciscanos arrábidos aos quais no passado já houvera feito perto de Santarém, um convento só aceite pelos arrábidos.
As construções feitas para os frades na Quinta de Belém, não sendo um convento, serviam para albergar os frades que de passagem entre o convento de Santarém e o da Arrábida (1542) ali ficavam sob a proteção de D. Manuel. Esta série de pequenas celas e ermida, pousada dos frades, provavelmente construídas por eles segundo a regra de S. Francisco, adaptando-se ao terreno, sem plano, sem respeitar nenhuma das linhas geométricas do palácio renascentista foram designadas e até hoje guardam o nome de Arrábida.
Quando chegamos ao século XVII um novo alento é dado à quinta de D. Manuel de Portugal vinculada ao morgado dos Corte Real e vai como dote de D. Joana Inês de Portugal parar a seu filho D. João da Silva Telo de Menezes (1648-1740) terceiro Conde de Aveiras. . A sua intenção de aumentar e enriquecer a quinta que herdara de sua mãe revela-se quando compra aos descendentes de D. Jorge de Mascarenhas em 1674 o prazo de cima que o mosteiro lhe havia dado de aforamento em 1606. D. João vincula esta nova área ao morgado em 1680 e vai fazendo benfeitorias investindo sobretudo no espaço exterior.
Dentro da propriedade, estas benfeitorias feitas nos jardins são também enunciadas na Carta Padrão e conseguem-se localizar no mapa: começa a descrição pelo terraço que dava diretamente para a praia e sobre o qual se havia construído três casas de fresco que se identificam no mapa e ainda hoje se vêm bem no estreito terraço que deita para a rua. A casa do meio (5x5 m, aproximadamente) era decorada de estuques e tinha uma fonte com uma figura de jaspe; os estuques foram, no século XVIII, substituídos por azulejos, o nicho da fonte é ainda hoje revestido a pedra irregular a imitar os grottoe italianos, mas a estátua de jaspe já não se encontra. Um detalhe não referido na carta padrão mostra-nos que é a estrutura desta casa de fresco que suporta uma plataforma saliente exatamente a eixo do jardim e palácio e onde foi colocada, tal como no palácio Fronteira, uma mesa de pedra espessa e maciça à volta da qual se podem sentar cerca de doze pessoas. Em ambos os casos este é um local de encontro, no jardim e donde se desfrutavam as melhores vistas, à sombra de um caramanchão com trepadeiras.
Um gradeamento em ferro com pedestais de pedra é descrito no jardim de cima no qual também é dada a localização de bustos de mármore, um tanque e uma escada que liga ao jardim de baixo. Hoje em dia este é o jardim grande fronteiro ao palácio presidencial com três lagos evidentes no mapa de 1856 e onde enormes pinheiros mansos dão dimensão vertical aos canteiros preenchidos por um intricado desenho de buxo.
Um acrescento ao palácio renascentista vem descrito em termos que engrandecem quem o mandou construir e dignificam todo o jardim; é uma varanda que se estende por toda a fachada sul do palácio, ladeada por duas escadarias de pedra com grades de jaspe - e acrescentamos (de talhe igual às das varandas e balaustradas do Palácio Fronteira). Por baixo da varanda, uma casa de fresco e uma fonte com uma estátua de mármore de Itália. Exceptuando a estátua, todos estes elementos se encontram ainda hoje no local mais privilegiado do edifício, a fachada sul, aberta para o rio e donde se vê o mar. As paredes foram mais tarde revestidas com grandes painéis de azulejos cuja origem se desconhece, mas que vêm trazer mais um elemento de semelhança com o revestimento das paredes do terraço do palácio Fronteira e de tantos outros terraços de jardins portugueses.
Um novo jardim a poente vem a seguir descrito na Carta de Padrão de Venda da Quinta de Belém e todos os seus elementos se podem verificar hoje em dia no terreno “o jardim que fica da parte de dentro da cerca junto às casas com a da varanda poente com um tanque com uma figura grande de mármore de Itália que faz a fonte, e no fim do mesmo jardim um pombal em forma de teatro ornado tudo com vários meios corpos de mármore e encostado ao muro deste jardim um tanque por todo o comprimento dele” (Carta de Padrão da Venda da Quinta de Belém, p. 6).
Ao contrário do que parece pela descrição lacónica de cada elemento, este é o morceau de bravoure do 3º Conde de Aveiras nos jardins da sua quinta de Belém, e segue bem de perto os elementos da composição que Le Nôtre havia trazido para o jardim de Versailles a partir de 1661; o teatro é uma belíssima e bem dimensionada construção em três peças (bem evidentes no mapa de 1856) composta por uma cascata central de onde pinga água desde o cimo e onde uma notável estátua de Hércules esmagando a Hidra, ocupa a posição central. Para que a água caísse à altura da cascata, foi necessário criar um reservatório no topo do edifício e a engenharia hidráulica que se dominava na altura, levou à construção de um depósito semicircular com dois níveis de armazenamento, alimentado por uma coluna central que vem da base do edifício. Uma das imagens que temos desta cascata apresenta no topo desta construção um repuxo alto o que obriga a um sistema hidráulico ligado às cotas mais altas da propriedade para que a pressão seja garantida pela diferença de cota, acione a coluna de água e encha o depósito para alimentar os repuxos nas peças escultóricas.
Aquilo que terá sido um pombal, é uma bela composição setecentista constituída por dois corpos com a mesma altura, proporções e ornamentos tão bem lançados (será obra de Mateus Vicente de Oliveira?) como a cascata de Hércules e onde se abrem de cada lado pórticos formados por três arcos e dobrando para sul a mesma composição de arcos tendo em cada esquina um nicho com estátuas sobre uma peça de água. são enormes gaiolas para aves que vamos encontrar dentro dos pórticos; os pontos de inserção dos gradeamentos ainda se vêm, mas as aves que se colecionam nestas luxuosas gaiolas não são pombos mas aves exóticas e fazem parte da coleção de um homem que segue os padrões dos jardins de Versailles.
Para obter um terraço plano para a construção do jardim da cascata, foi levantado um muro de suporte, que assim criou um parterre ladeando a parte poente, atrás do edifício principal, onde existiam as celas e ermida dos Arrábidos. Pode afirmar-se que foi então D. João Telles de Menezes que, seguindo a “receita” da menagerie de Versailles, construiu o conjunto do teatro de gaiolas em cima e as jaulas para animais selvagens embutidas no muro de suporte sobre o qual assenta todo o parterre.
A confirmar a data e autoria desta construção, associamos a compra que o Conde Aveiras faz dos terrenos do prazo de cima sem o qual não teria acesso a uma quantidade de água que chegava à arca de água, mencionada na descrição das disponibilidades em água da propriedade e cuja importância para a venda as faz ocupar duas páginas da carta padrão. Finalmente este sistema hidráulico não se conseguiria pôr em funcionamento sem um reservatório de armazenamento a cotas elevadas e temos então a descrição do lago que se fez no prazo de cima e “onde se juntam todas as águas” e onde é então construída mais “uma casa de recreação no canto do prazo de cima com janela para o campo sobre a ribeira dos Gafos com ornato de estuque e uma fonte com estatua de mármore de Itália” (Carta de Padrão de Venda da Quinta de Belém, p. 6). Observando o mapa de 1856 identificamos bem esta descrição por ainda aparecer desenhado um lago e uma construção ao canto da propriedade, bem em cima da ribeira. Infelizmente a adaptação deste espaço à exposição do Mundo português de 1940 destrui qualquer vestígio desta peça setecentista que constitui a pedra de toque do conjunto hidráulico que alimentava por gravidade as fontes da cascata, e os repuxos das gaiolas de aves exóticas.
Estes grandes tanques frequentes nos jardins portugueses desde a Bacalhoa, são uma surpresa para os historiadores de arte de jardins e revelam uma grande originalidade “[…] todo o espaço, tanque e casa de fresco não tem precedente que se lhe assemelhe nem em Espanha nem em Itália [...] em Fronteira o olhar estaca com algo de novo e estranho; um tanque afastado do palácio ocupa toda a largura do jardim” (Gothein, 1979, p. 383).
Na quinta de Belém voltamos a ter referido este tipo de tanque no topo superior da propriedade, com uma casa de fresco decorada de estátuas.
O sistema de águas, quando ligado a este tanque, que recolhe a água das nascentes, era notável e vem confirmar o fascínio da água que a ciência e a técnica do séc. XVII tinham permitido “domar” e que encontrava nos jardins terreno fértil para demostrar a mestria do homem, sobre este elemento. “O século XVII tem um grande amor pela água. Vê no jorrar das fontes e no borbulhar das cascatas o retrato das paixões da vida. Nas imagens reflectidas à superfície dos lagos e dos canais, turvadas de repente pelo vento, delicia-se lembrando a fragilidade das coisas. Apaixonado pelas linhas e pela perspectiva, nada o distrai melhor do que estas fantasias ópticas. Profundamente religioso, crê que todas as águas, doces e salgadas, comunicam entre si e todas com o céu. Aliás, até Descartes partilha este fascínio, como testemunham as suas Météores” (Orsenna, 2003, p. 68).
Já no seculo XVIII, o repuxo que jorra alto, acima da cascata, é a prova que confirma a mestria do sistema hidráulico de Belém, e quando se enche o tanque de cima da cascata, ainda saem dos bebedouros das gaiolas repuxos de água, de altura bem calculada que nos confirmam hoje em dia a precisão de todo o conjunto. Triste, no entanto, é depararmo-nos com a história do jardim que se seguiu; em 1906. A propriedade é cortada, ficando o palácio da Presidência da República e os jardins envolventes a ocupar uma área de 2,5ha quando a área emparcelada pelo Conde Aveiras e que equilibrava todo o conjunto tinha atingido os 7 hectares. Com este abrupto corte ficou truncado este notável sistema hidráulico do séc. XVII e XVII e perdeu-se também o significado simbólico do jardim de D. João, Conde de Aveiras; a estatuária que ele escolhera para o seu jardim trazia consigo a mensagem que entendia deixar para a história. Resta-nos um tema na cascata que se repete numa belíssima estátua de Hércules encostado ao bastão e trazendo na mão três maçãs do jardim das Hespérides.
Tal como Fouquet em Vaux-le Visconte, D. João Telo de Menezes tendo no seu curriculum vários trabalhos e bem-sucedidos, escolheu Hércules para os imortalizar, e será o seu neto, também João, a entregar ao rei D. João V o jardim e a mensagem de força que se mantinha viva no significado artístico da Quinta de Belém. A esta compra outras se seguem permitindo definir a propriedade real que atinge então 7,5 hectares. Nela serão abertos os famosos caminhos em simetria com um eixo que chega aos 250 m e que dentro da sua pequena escala (o eixo de Versailles mede 5km) definirá o traçado de todo o terreno em canteiros que mais tarde são plantados com árvores de fruto. Todo o processo de compra e plantação será cantado em latim pelos poetas da altura com referências à beleza do sítio, e à obra de arte que a mão régia para ali prepara.
Depois da morte do rei, o jardim continua a ser gerido em conjunto com as outras propriedades reais da encosta da Ajuda e voltará a ter novos, mas curtos investimentos durante o reinado de D. José e pela mão da rainha D. Maria I. O escudo real aparece então a encimar a famosa cascata do Hércules e urnas de pedra são colocadas sobre platibanda das gaiolas em teatro de D. João, Conde de Aveiras. Há registo de muitos trabalhos de manutenção continuada (encomendas de serralharia, canos, pedras e arranjos de muros) que são a prática normal dos jardins e são inúmeros os registos em que se paga a quem ficou “ seis noites e quatro dias santos de guarda às flores do Jardim da quinta de Belém” ou “ despendi com João Francisco pelo carreto de 34 carradas de saibro que foram para o jardim da secretaria.”. A secretaria do Rei D. José, depois do terramoto, tomou lugar no palácio do conde da Calheta no topo do jardim, com os terrenos agora fundidos na quinta de Belém, e as equipes de jardineiros e trabalhadores servem agora as quintas reais de Belém confundindo-se já os trabalhos, mas sem novidades na Quinta de Baixo e maior investimento na construção do Jardim Botânico da Ajuda.
Um novo traçado mais naturalista opera-se durante o reinado da rainha D. Maria II adaptando o jardim à nova moda do Landscape garden. O levantamento de 1901 dá-nos as modificações que são sobretudo de traçado e não de introdução de novos elementos. Novas fontes são colocadas no jardim grande e o buxo passa a ser cortado segundo um desenho, numa data que desconhecemos, mas adaptando os padrões clássicos.
Chegados ao século XX, a quinta de Belém terá uma alteração que lhe é profundamente negativa; a divisão física do terreno pelo Presidente Manuel de Arriaga passando a duas diferentes instituições separadas, que durante a presidência do Dr. Mário Soares passa a ser um gradeamento. Na parte de cima será instalado o jardim colonial (atual jardim Botânico Tropical) e em 1940 estes terrenos serão preparados para a exposição do mundo português com toda a estatuária, lagos e fontes a celebrar o mundo colonial e vegetação tropical e subtropical introduzida de todos os continentes nas suas estufas e alamedas.
Três intervenções nos jardins do Palácio de Belém serão a marca do século XX e da função republicana de Palácio Presidencial que desempenha. A primeira, subtil no seu início mas de grande impacto visual é hoje a imagem de marca da fachada do palácio; seis notáveis pinheiros mansos cresceram desde a implantação da República e atingiram a maturidade no jardim grande, saindo de dentro dos buxos, em posições irregulares, resistentes ao vento salgado que vem do mar, com as copas robustas e marcando com um notável volume vegetal a ligação entre o Tejo e o seu mais antigo palácio.
A segunda, não é de imagem pública como a anterior, e dentro da sua discrição, integrada no núcleo mais discreto do palácio, preencha a função de cenário à residência privada do Presidente da República. Em 1981 foi encomendado ao Arquiteto Paisagista Manuel Sousa da Câmara, pelo General Ramalho Eanes e sua mulher o projeto de arranjo do jardim da Arrábida; espaço como vimos de formas irregulares e enclausurado por muros e fachadas dos edifícios de que conhecemos já a história.
O Plano Geral do projeto revela-nos a mestria do projetista conseguindo trazer àquele espaço convencional alguns traços modernistas na implantação lateral da piscina, no aproveitamento da pérgula e sobretudo deixando duas grandes superfícies vegetais dialogar entre si; o relvado parecendo maior do que de facto é, iluminado e contrastando com o fundo escuro de uma cortina de vegetação, e a parede de bougainvillias entrelaçadas de cores fortemente exóticas que cobrem toda a fachada sul, deixando só espreitar as janelas das celas dos Arrábidos, como se um longo entendimento com a natureza herdado dos franciscanos viesse trazer a escala humana à família de cada presidente na sua função doméstica.
A terceira e última intervenção é o jardim em terraço que cobre a construção do Arquivo da Presidência. Foi encomendado pelo Presidente Jorge Sampaio ao Arquiteto Carrilho da Graça que teve a colaboração dos Arquitetos Paisagistas João Gomes da Silva e Inês Norton de Matos, e cria com um desenho encaixado no desnível do terreno, as construções do arquivo. Uma plantação regular de teixos em pirâmide dá ritmo à grande superfície relvada que termina na fachada cega do edifício. Rematando com lírios e alfazemas uma faixa azulada faz o bordo da placa do edifício e o diálogo entre os materiais metálicos de cor enferrujada, e o verde da vegetação em linhas muito simples dá uma nova interpretação artística aos jardins de Belém, preparados para o século XXI.
A visita a estes jardins é um passeio pela história de Portugal: aqui ficaram marcas de representantes que fizeram a defesa da nação, enriqueceram a língua, celebraram a cultura, estimularam as artes, e serviram o bem público. Esculpiram nesta paisagem os seus sonhos e cada um que chegou à posse deste terreno de eleição aumentou-o e tratou-o como se construísse um pouco do paraíso. Assim foi sendo até que, por razões que mal se entendem e muito se lamentam, a Quinta de Belém foi truncada. A Quinta estendia-se por cerca de 7 hectares e constituía uma unidade, cercada, consolidada pela marca artística dos seus patronos, com complexos sistemas de circulação de água a funcionar desde a extrema de cima até aos magníficos repuxos e cascatas de baixo. Ao ser dividida, deixou o palácio sem parte do seu corpo, diminuída na sua dignidade e aparato, sem a força e poder que um jardim atribui a um palácio. Os jardins que hoje envolvem o palácio de Belém são só parte daquilo que no passado foi uma área que se estendia em equilíbrio com o peso da função desempenhada no palácio e desenhada como paisagem representante do momento científico, social, político, e artístico do país.
Classificado como Monumento Nacional segundo o Decreto n.º 19/2007, DR, 1.ª série, n.º 149 de 03 agosto 2007 *1 e ZEP, DG, 2.ª série, n.º 203 de 31 agosto 1967 (palácio).
Texto de Inventário: Cristina Castel-Branco – 2020.
inserido na ROTA DA GRANDE LISBOA
Jardins do Palácio de Belém
(Consultada em Janeiro de 2020)
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