Quinta da Regaleira

Lisboa | Sintra

Quinta da Regaleira

No final do século XIX, Dr. António Augusto de Carvalho Monteiro regressado do Brasil com uma fortuna considerável acumulada pelo resultado de trabalho de extração de minas, decide construir em Sintra a sua quinta e palácio comprando a Torre da Regaleira, que lhe deu o nome. Esta já havia sido construída sobre as ruínas dum convento da Idade Média, trazendo para a obra oitocentista o tema geral de inspiração medieval.

Um primeiro projeto é encomendado a Henri Lusseau (1854-1931), o arquiteto paisagista que havia ganho em 1887 o projeto para o Parque da Liberdade, atual parque Eduardo VII em Lisboa, introduzindo ideias novas da arte de construir jardins trazidas do Paris de Haussman e entrançadas com a tradição inglesa dos jardins de passeio e encontro social. Por razões que se desconhecem o projeto de Lusseau para a Regaleira foi ultrapassado pelo de Luigi Manini, cenógrafo do teatro S. Carlos que havia feito para o seu amigo Sassetti uma villa de traço lombardo-piemontês sobre a encosta Norte da serra de Sintra.

Por outro lado o Hotel-Palácio do Buçaco havia sido terminado há pouco, sob o traço do mesmo cenógrafo Luigi Manini e constituía um exemplo extraordinário do romantismo no qual a arquitetura decorada por riquíssima escultura de pedra rendilhada, em calcário da região de Coimbra trazia ao século XIX os símbolos e as histórias da Idade Média tão caros à reinterpretação romântica. António Monteiro, conhecido por Monteiro dos Milhões encomenda então a Manini a obra da sua quinta em Sintra e conta também com os seus conhecimentos e com os seus técnicos especializados em perfurações e minas, explorando esse saber e criando nos jardins um extraordinário conjunto de poços e grutas artificiais escavadas no granito da Serra de Sintra.

Diz-nos João Cruz Alves coordenador do catálogo sobre a exposição de 2006 que deu á luz o espólio de Manini que "o processo de assimilação de conceitos e técnicas construtivas a partir da sua formação na oficina [de cenografia do teatro La Scala em Milão] foi facilmente transposto para a construção paisagística. (...) na edificação arquitectónica, este conhecimento prático permitiu ao arquiteto corresponder ao desiderato de Carvalho Monteiro: a criação de uma obra de arte total" e explica o jardim e a sua adaptação à topografia íngreme da Serra "A estrutura do parque, muito determinada pela morfologia do relevo, é definida a partir de um caminho principal que atravessa a propriedade de uma extrema à outra, numa mesma linha ascensional, a partir do qual uma rede de veredas e caminhos, serpenteando judiciosamente, atravessam os canteiros conferindo-lhes formas sinuosas. A solução de continuidade entre as áreas de jardim e a rede de caminhos, criam uma ilusão de incompletude e de diversidade espontâneas, como se a intervenção do arquiteto se limitasse a acompanhar os caprichos da natureza."

O jardim é decorado de muitos elementos construídos e abre-se sobre vistas criando efeitos de perspetivas que jogam com enquadramentos e vistas profundas criando uma composição que segundo João Cruz Alves (2006) "é tributária da formação cenográfica de Manini, que além da exultante sensibilidade e densidade decorativa, apostava na maior amplitude possível do campo visual e o constante jogo entre a-re1aça·o do interior com exterior". As alusões simbólicas são numerosas e "remetem-nos para os conceitos e arquétipos de fertilidade e eternidade do mundo endógeno e subterrâneo. [...] Manini adaptou e recriou à escala da Regaleira, com maior pluralismo e monumentalidade, como convinha ao gosto de fin de siecle, um léxico e elementos arquitetónicos típicos dos tratados oitocentistas, como as grutas artificiais, o aquário, o colmeal, as cascatas com atravessamentos das linhas de água, pontes rústicas ou pedras, torres e pavilhões. Entre propostas que não lograriam sair do papel, os elementos arquitetónicos e paisagísticos, dos quais existem os desenhos de projeto, têm autonomia e unidade formal, mas não foram integrados na leitura de conjunto como seria expectável num projecto paisagístico." (Alves, 2006). A herança da cenografia é útil ao jardim até certo ponto pois a falta de unidade espacial e um traçado continuo não existe na Regaleira. Existem sim várias cenas, vários quadros no jardim e o seu significado tem vindo a ser interpretado relacionando-se com a pertença maçónica do seu proprietário.

Da sua investigação João Cruz Alvares escreve "Manini dirigiu os trabalhos no local, traçando caminhos, delineando cursos de água, acompanhando a montagem das grutas e escolhendo as pedras depositadas em obra, com a mesma destreza com que usou o lápis ou o pincel. Além da mata e jardins a quinta incluía ainda áreas produtivas para aclimatação e replicação de espécies exóticas e espontâneas. A arquitetura destinada a serviços compunha-se de edifício das cocheiras, com cavalariças e vacaria, estufas, oficinas, incineradora para queima de resíduos vegetais e casa do gerador de eletricidade.

Os jardins da Regaleira conheceram pelo menos duas fases de grande impulso a nível construtivo. Os movimentos de terras para implantação dos edifícios e caminhos, muros e taludes, ou mesmo a engenhosa rede de distribuição e recolha de água e esgotos, começaram ainda em 1898. A par da construção das Cocheiras, a primeira fase estaria concluída em 1904 com as grutas e poços na zona da mata, aquário, a generalidade das torres, mirantes e lagos. Parte da vegetação exótica, palmeiras e fetos, foi importada do Brasil em 1903 e plantada sem ordem aparente, parecendo reforçar o efeito desordenado da visão romântica. A segunda fase acontece depois da concentração de esforços na construção da capela e do palácio. De 1908, data da remodelação da estufa quente e construção do terraço das quimeras, até à integração tardia dos grandes portões e gradeamentos de ferro, por volta de 1912, a propriedade ficou praticamente concluída." (Alvares, 2006).

"De recorte simples e elegante, a loggia de Pisões e o mirante do Relógio anunciam as entradas do parque junto à velha estrada para Colares. O cuidado que o arquiteto colocou nas proporções e na decoração das duas estruturas em estilo manuelino constituem ao mesmo tempo uma presença emblemática e representativa do interior do universo da Regaleira [...]. Estas estruturas, como acontece também nos acessos ao palácio e às cavalariças, receberam monumentais portões em ferro fundido, profusamente ornamentados, fazendo justiça ao artifício do arquiteto e à arte industrial oitocentista portuguesa." (Alvares, 2006).

Destaca-se a Torre da Regaleira em pedra calcária branca que João Cruz Alvares considera ser "uma das peças mais arrojadas da arquitetura do parque. Na base da estrutura fica a sala rústica, que hoje é conhecida por gruta da Leda onde uma cascata de água parece brotar das profundezas da terra mãe.

Tal como as torres zigurates sobre a cisterna, de que existe um belíssimo desenho de Manini, estas torres de prazer ou miradouros para deleite da paisagem, são ele­ mentos típicos dos tratados da arquitetura de jardim" (Alvares, 2006) do seculo XIX e constituíam pontos de fuga nos jardins vindo a ser designados por follies.

Outro elemento de destaque é a Fonte da Abundância. "Datando de tempos imemoriais, a Fonte da Regaleira, conhecida pela qualidade excecional da sua água, que cristalizou porventura o mito do elixir da vida eterna, foi adaptada em 1898 através de dois projetos riscados por Luigi Maniní. À maneira neoclássica, o projetista italiano reformulou o enquadramento da fonte circunscrevendo a área através de uma êxedra rematada pelas dionisíacas e belas taças da abundância. A monumentalidade do espaço reconhece-se igualmente na fachada da fonte que ostenta obeliscos, taças e vasos em cantaria que Manini detalhou num belo desenho aguarelado. A nível decorativo recorreu à técnica dos embrechados, misturando com grinaldas de conchas e búzios várias cores de minúsculas pedras assemelhadas a cristal, pedra vermelha e mármore branco." (Alvares, 2006). Ainda hoje a exuberância da decoração ultrapassa o que podemos esperar num jardim e vale-lhe a presença das árvores que em Sintra se transformaram em grandes monumentos para deixar o tom excessivamente kitch e ganhar a patine, a sombra, a luz dourada e as brumas de Sintra que dão ao jardim da Regaleira e à sua decoração em pedra um ambiente sombrio, melancólico e quase místico.

Monteiro dos Milhões é também um produto do seculo XIX brasileiro em que o liberalismo se mistura com o exotismo e onde a construção de jardins vai ter uma expressão livre na parte florística e muito influenciada pela França de Napoleão III no que diz respeito ao traçado e componentes do jardim -É assim que surge a estuda quente da Regaleira, construída para albergar as orquídeas vindas do Brasil "O projeto de arquitetura da estufa quente foi idealizado para recolher a coleção de orquídeas e espécies exóticas de Carvalho Monteiro. [...] é repartida em três zonas que permitem a variação dos graus de humidade e temperatura, designadamente, a zona fria, temperada e aquecida. Num dos cantos, em ambiente mais fresco e escuro, ficava a casa das mentes e, por baixo desta encontrava-se a casa da caldeira. Nas mísulas, existiram bustos de botânicos famosos, como Le Nôtre e Brotero a quem Carvalho Monteiro consagrava uma profunda admiração. No registo da fachada da estufa, figura um largo painel de azulejos pintado por Angelo Samarani, cenógrafo italiano que colaborava com Manini no teatro lírico. A composição do painel, desenhada por Manini, inspira-se em gravuras oitocentistas das revistas Ilustracion Artistica e L'lllustrazione Italiana, paradigmas do gosto nesta época. Na segunda metade do século XX, as intervenções de Waldemar d'Orey eliminaram o corredor de refrigeração e a abóbada central com o intuito de aumentar o espaço interior da estufa." (Alvares, 2006).

O morceau de bravoure da Regaleira é sem dúvida o poço iniciático que nos fica na memória como a peça identitária e única que a Regaleira nos revela mas também confirma a simbologia maçónica muito presente na Quinta de António Monteiro. De facto no projeto Lusseau já o poço iniciático existia e fazia parte dos requisitos programáticos do proprietário. " Comprova-se hoje que fazia parte do programa de Carvalho Monteiro para o parque da Regaleira, estando já detalhada no plano Lusseau como Roche surprise. Coube efetivamente a Luigi Manini a composição plástica desta surpreendente e arrojada estrutura [...].

A gestão pessoal da obra evitou a Manini maior trabalho de detalhe projetual. Estando rasgadas a dois níveis as galerias para construção das grutas, e aberto o profundo fosso, que a geologia determinou (ou impediu) que tomasse a sugestiva forma de um pentágono, o projeto adaptou-se à dimensão do espaço. Nesta perspetiva, Manini só teve necessidade de detalhar o módulo de articulação da escadaria, o patamar e o ritmo da colunata de suporte da abóbada da imensa espiral. Através de dois desenhos de pormenor, onde são visíveis os estudos e os cálculos para determinar a tipologia e alternância dos arcos, a estereotomia dos degraus e o perfil das colunas, trapézios e pedras aparelhadas, o arquiteto quantificou a obra para encomenda aos artesãos e estudou o equilíbrio elástico da própria estrutura. Com inegável carga mítica, até por omissão nas várias descrições coevas, a construção do poço iniciático adensa o mistério em torno da Regaleira e é a pedra de toque para interpretações metafísicas e simbólicas.

Da mesma forma, a complexidade das grutas artificiais que se estendem a partir do poço, aproveitando em larga medida as galerias construtivas, revestem-se de tufo marítimo entre grandes blocos graníticos da serra e remetem-nos para os mistérios do mundo subterrâneo. Dentro da gruta do Labirinto espraia-se um lago, criando a ilusão de uma enorme caverna, que parece dar expressão ao poder das forças naturais. Sendo um dos elementos mais característicos dos jardins renascentistas, o "grotto" encontra um paralelo recorrente na imagética lírica oitocentista. Na Regaleira, as grutas aparecem materializadas a partir das belíssimas maquetes cenográficas que Manini produziu para as óperas Mefistófeles, de Arrigo Boito, Macbeth de Giuseppe Verdi ou para a Cármen, de Georges Bizet." (Alvares, 2006).

Do mundo da ópera do seculo XIX nasce a quinta da Regaleira que constituí um expoente tardio do romantismo neomedieval e ganhando de Sintra o ambiente fantástico dos musgos, das neblinas e do mistério, confere a Sintra a posse e o gozo de uma joia da fantasia e da mística portuguesa romântica.

O parque da Quinta da Regaleira está incluído na proteção do palácio que é considerado Imóvel de Interesse Público, Decreto n.º 5/2002, DR, 1.ª série-B, n.º 42 de 19 fevereiro 2002 *1. Incluído também na Área Protegida de Sintra - Cascais (v. IPA.00022840).

Texto de Inventário: Cristina Castel-Branco – 2020.

inserido na ROTA DA GRANDE LISBOA

Quinta da Regaleira

(Consultado em Março de 2020)
ALVES, João Cruz (coord. e direção) – Catálogo da Exposição Luigi Manini - Imaginário e Método. Sintra: Fundação Cultursintra, 2006.
GUIA de Portugal: Generalidades Lisboa e Arredores I. Lisboa [S.l.]: Fundação Calouste Gulbenkian, 1979. Vol. 1. pp. 538-540.
CARITA, Hélder; CARDOSO, António Homem – Tratado da Grandeza dos Jardins em Portugal: ou da originalidade e desaires desta Arte. [S. l.]: Edição dos Autores, 1987. pp.294-297.
PEREIRA, Artur D.; CARDOSO, Felipa Espírito Santo; CORREIA, Fernando Calado. – Sintra e suas Quinta. Sintra: Edição dos Autores, 1983, p. 28-30.
https://www.regaleira.pt/pt/quinta-da-regaleira
http://www.monumentos.gov.pt/Site/APP_PagesUser/SIPA.aspx?id=22674
http://www.patrimoniocultural.gov.pt/pt/patrimonio/patrimonio-imovel/pesquisa-do-patrimonio/classificado-ou-em-vias-de-classificacao/geral/view/71688/

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