Quinta das Machadas
Lisboa | Setúbal
Quinta das Machadas
Ao abrigo do programa EEAGrant e sob coordenação da Associação Portuguesa de Jardins e Sítios Históricos iniciou-se em 2009 a recuperação do sistema de águas, dos pavimentos e muros dos jardins e o pomar da Quinta das Machadas, devolvendo-lhes a dignidade e a beleza originais. Hugo O'Neill o atual proprietário registou esse esforço conjunto "[…] que pôs em evidência a valia técnica do sistema de rega tal como concebido quando em 1770 foram construídos pelo meu 7º avô, Jacob Friederich Torlade, armador e banqueiro de Hamburgo e Cônsul da Liga Hanseatica em Setúbal -onde vivia- para promover a exportação do sal do Sado com destino aos países do Mar Báltico. Juntamente com o sal aquele meu avô viu a oportunidade de produzir e exportar citrinos para os mesmos destinos e assim comprou à Ordem de Santiago os terrenos que agora constituem a Quinta das Machadas escolhidos pela sua topografia que permitia a maximização do aproveitamento dos recursos aquíferos conseguindo a rega de um pomar com 6 hectares apenas com dois poços e dois tanques de rega.
Mas, além das características técnicas do esquema de rega montado, este meu avô, quis deixar um cunho da sua cultura e do seu gosto que se manifestam no estilo da casa e dos jardins, bem como na construção do principal tanque de rega em torno do qual arranjou uma zona fresca com conversadeiras e tanque de embrechados. A ornamentação do tanque de rega principal evoca com estátuas em pedra de características únicas a lendária luta entre Thor, o Deus Nórdico da Guerra, e a Serpente Mitgard, uma figura divina que representava o poder do mar. Esse tanque com os seus jogos de água, com a sombra de plátanos plantados há 240 anos pelo meu antepassado e a zona fresca agora recuperados, formam um elegante e acolhedor local que com muito gosto se abre a partir de agora ao público." (Hugo O’Neill, depoimento, 2010)
A Quinta das Machadas de Cima que aqui se apresenta foi assim adquirida à Ordem de Santiago, por volta de 1760, por Jacob Friederich Torlade, e por sucessão, a Quinta passou para a sua filha Ana João Torlade que em 1784 casou com Carlos O´Neill pertencente a uma antiga linhagem irlandesa. Com o casamento, a quinta pertencente a Carlos O´Neill (Quinta da Várzea de D. Teresa) juntou-se com a Quinta das Machadas de Cima, passando a chamar-se Quinta das Machadas de Baixo. As Machadas de Cima e as Machadas de Baixo formavam então uma única propriedade com cerca de 18 ha.
No séc. XVIII Setúbal torna-se uma cidade cosmopolita, com vários pontos comerciais nórdicos. O comércio do sal e dos citrinos principalmente com a Europa do Norte floresce; Hans Christian Andersen, amigo da família O’Neill, permaneceu durante o Verão de 1866 na Quinta dos Bonecos, pertencente a Carlos O’Neill, muito perto da Quinta das Machadas. Os extensos laranjais de Setúbal dominavam a paisagem: “Em breve temos em nossa frente Setúbal, a St. Ybes dos Ingleses, onde laranjais, seguindo-se uns aos outros, cobrem todo o vale entre Palmela, S. Luís e a Serra da Arrábida, para os lados do oceano” (Andersen, 1984, p. 50).
As Machadas de Cima “Juntamente com a quinta de S. Romão constitui a primeira fonte de produção de citrinos destinados […] a exportação para as cidades Hanseáticas no mar Báltico” (Hugo O’Neill in Barata & Santiago, 2007, p. 19). Pela análise de uma planta do séc. XVIII da Quinta das Machadas do arquivo histórico do proprietário a produção de laranjas ocupava mais de metade da exploração dispondo-se em talhões que formavam uma quadrícula no terreno. O olival, com menos expressão que as laranjeiras e em proporções menores, sobreiros, vinha, pinhal, hortas, compunham as restantes explorações. As zonas residenciais originais eram duas, correspondentes às Machadas de Cima e Machadas de Baixo, existindo também habitação dos caseiros, pombais, estábulos e outros anexos do assento de lavoura, nas Machadas de Cima.
Os espaços de lazer e de produção misturam-se para além do jardim de buxo e lago, junto à casa, e os talhões de laranjas são cortados por caminhos ornamentados de bancos, pérgulas e regadeiras levantadas. O sistema da fonte e lago barroco faziam parte da Quinta das Machadas de Cima. Foi aqui que em 1825, D. João VI foi hóspede da família, existindo uma lápide comemorativa que assinala o acontecimento, encimando um portão que dá para o jardim a Poente. Mais tarde, Hugo O’Neill, avô do actual proprietário, mandou ampliar a casa e em 1980, a produção de citrinos foi substituída em alguns talhões por hortícolas, viveiros para venda comercial e pomar de nogueiras.
Destaca-se nesta quinta o sistema de águas desde a recolha, ao armazenamento e à distribuição pois a Quinta das Machadas de Cima situa-se numa zona plana cujos terrenos aluvionares se encontravam num antigo braço de mar que se estendia até Baixa de Palmela. Nesta região a água provêm maioritariamente de poços que captam as águas subterrâneas dos aquíferos que se encontram a poucos metros de profundidade. Dos 8 poços existentes (4 nas Machadas de Cima) 2 estão ainda activos (poço da antiga nora mourisca e da nora do aqueduto) e 2 inactivos apesar de ainda com água. A água era recolhida dos poços através de noras movidas por força animal, das quais quatro ainda possuem o sistema de elevação da água quase completo.
Com o financiamento do programa EEAGrant e com uma equipe de arquitetos paisagistas acionou-se o restauro do sistema de águas seguindo os postulados da Carta de Florença (ICOMOS- Unesco 1981) que defende que as técnicas de restauro e conservação devem basear-se no respeito pelos materiais originais e se possível em documentos autênticos. Por esta razão foi feito um trabalho de prospecção pela empresa E.J.R. - Sociedade Técnica de Projectos e Construções, Lda, encabeçada pelo Eng. João Ribeiro que teve como principais objectivos não apenas o registo dos materiais existentes e seu estado de conservação, mas também o esclarecimento sobre o original funcionamento do sistema hidráulico (E.J.R, 2009). In loco, e em conjunto com a equipa projetista ACB Arquitetura Paisagista, várias hipóteses de sistemas de circulação de água foram testadas, conduzindo posteriormente a sólidas conclusões, que permitiram executar um restauro que respeitou os princípios das cartas Internacionais.
O sistema hidráulico mais complexo e mais interessante é o do poço da nora mourisca, fonte de embrechados e tanque de Thor, não só pela engenharia do sistema de adução, condução de água como pelo ornamento utilizado nas estruturas. No poço que abastece o tanque de Thor, do sistema original de extracção de água do poço, já nada resta, a fonte de embrechados não estava em funcionamento e a água, que originalmente circulava por gravidade em todo o sistema, era directamente bombeada do poço para o tanque.
Através das prospeções percebeu-se que as estruturas de condução de água, a plataforma do poço, a disposição dos pilares indicam que outrora existia uma nora mourisca de eixo vertical provavelmente anterior à aquisição do Sr. Torlane em 1760. Um dos esteios em pedra, em redor do poço, fazia parte de um conjunto que suportava uma pérgula que veio a ser restaurada assim como três receptáculos para a água, em pedra calcária assente no rebordo do poço.
A fonte de embrechados é uma parede côncava com vidros, conchas e pequenas pedras e os característicos pedaços de porcelana frequentes nos jardins portugueses a partir do século XVII. A água proveniente do reservatório do poço circula por gravidade e pressão e brota de vários pontos na fonte de embrechados, caindo para a taça superior. A água escorre agora por vários orifícios no fundo da taça, para a taça mais abaixo, que por sua vez escorria para a taça maior, ao nível do solo.
O tanque de Thor, com uma espessura de 1.2m e profundidade tem um nome que provém da estátua central do lago que representa o Deus Thor, da mitologia nórdica. O tanque com cerca de 60.000 litros de armazenamento era alimentado a partir da água vertida pela estátua de Thor que chega a esta a partir do poço, por uma conduta subterrânea. O tanque tem uma planta irregular, centrada, é ornamentado no exterior por baixos-relevos e vestígios de frescos e no interior teria provavelmente um reboco com pigmento encarniçado. Duas taças exteriores ao tanque recebem água a partir deste, uma das quais de frente para o terreiro da fonte de embrechados, ornamentada com uma estátua com um pelicano e de cada lado um medalhão com a imagem dos fundadores da quinta. Além de armazenar água para rega, outrora o tanque tinha peixes o que é evidenciado pela presença de pequenos nichos na espessura das paredes interiores. A parede exterior do tanque é ornamentada de baixos relevos e pintura a fresco que lhe confere um carácter exótico dando animação e valorizando este lugar de estadia formado pelo tanque, nora, e fonte de embrechados, e todo este conjunto à sombra dos grandes plátanos.
Junto ao descarregador de superfície do tanque de Thor, um pedestal poligonal e irregular permitiu identificar que a estátua de Jörmungandr (ou serpente de Midgard) pertencia a este conjunto hidráulico. Esta estátua, trabalhada em pedra calcária, tem inúmeros orifícios escondidos que correspondem a esguichos, formando giochi de água que surpreenderia convidados molhando-os junto ao tanque. A água é aduzida por uma conduta subterrânea vinda de um tanque central localizado na quinta a uma cota superior garantindo a pressão necessária para criar os efeitos de esguichos.
Por toda a Quinta encontram-se inúmeras caleiras que formavam uma rede quadriculada que permitia levar a água aos vários talhões dos imensos laranjais e da horta. Às mais antigas estão associados muretes em alvenaria de tijolo e pedra, com capeamento de tijoleira e nalguns casos reboco pigmentado dos muretes. Graças às caixas de recepção e divisão das águas designadas por almácegas, a distribuição da água era pluri-direccional, o que aliado à necessidade de atravessar caminhos, de se adaptar ao declive do terreno que embora suave tem de garantir a circulação gravitacional da água, faz com que tenhamos um engenhoso sistema de ‘interfaces’ entre caleiras. A água proveniente dos tanques circula por gravidade nas caleiras e é recebida nas almácegas, e distribuída conforme o talhão a regar.
A produção de laranja, os lagos e os vários talhões de rega exigiam grandes quantidades de água. Além do tanque de Thor, o tanque central da quinta desempenha uma função essencial de armazenamento de água. Com cerca de 140.000 litros de capacidade, é um tanque quadrado de alvenaria com cerca de 2.5m de profundidade, rebordo em placas de pedra, sendo uma construção simples, sem preocupação de ornamento, donde a rega era conduzida para caleiras. É o “coração” da rega, a partir dele bombeia-se actualmente a água que rega a maior parte das fruteiras, relvados, hortas e que se enche o lago do jardim de buxo da fonte da carranca da casa.
Este tanque era abastecido a partir de um poço situado a mais de 150 m de distância e a cota inferior. Neste caso, a nora associada ao poço é metálica e de eixo comprido. A roda de água, carretos e eixo trabalhavam bastante acima do gado, de forma a elevar a água a um nível superior para o aqueduto. A transmissão de movimento fazia-se por meio de rodas dentadas metálicas fundidas. A água era assim conduzida do poço até ao tanque central por gravidade através de um aqueduto. Toda a estrutura da Nora existe no local, incluindo os alcatruzes e foi totalmente restaurada em 2009.
O sistema hidráulico completo da Quinta das Machadas abrange outros pequenos tanques, lagos e fontes nomeadamente o tanque do terreiro de entrada da casa, junto ao muro que confina com as estradas das Machadas cuja água provinha de um mascarão inserido no muro e que se supõe que seria abastecido por um ramal do antigo aqueduto que abastecia de água a cidade de Setúbal e que passaria perto, deixando assim mais algumas pistas sobre o riquíssimo sistema hidráulico da Quinta das Machadas.
Uma das características mais valiosas da quinta é a mistura entre a função de produção e o ornamento que se entremeiam nesta quinta por todo o lado, tornando-a um dos melhores exemplos da quinta de recreio português.
Alguns destes cruzamentos dos caminhos considerados preferenciais para a visita às noras, foram restaurados através do nivelamento dos bancos existentes, retoque nas alvenarias pintura a cal com pigmento ocre da cor original. O ambiente de quinta de recreio característico das Machadas, ao mesmo tempo que a intensa função agrícola que em tempos teve é um dos traços que o restauro de 2009 visou recuperar. No meio da frescura das terras regadas e da sombra escura dos laranjais em largas alamedas a possibilidade de passear e parar nos ângulos do caminho é um dom da quinta que esperemos volte a ser possível gozar quando se voltarem a plantar as laranjeiras que fizeram a fortuna desta quinta.
Texto de Inventário: Cristina Castel-Branco, Maria Matos Silva, Raquel Carvalho.
Adaptação: Cristina Castel-Branco – 2020.
inserido na ROTA DA GRANDE LISBOA
Quinta das Machadas
(Consultada em Setembro de 2019)
ANDERSEN, Hans Christian. – Uma visita em Portugal em 1866. 2ª Edição. [S.I.]: Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, Ministério da Educação, 1984.
BARATA, Leonor; SANTIAGO, Raquel – Quinta das Machadas. Lisboa: Instituto Superior de Agronomia, 2007. Trabalho da disciplina de História de Arte de Jardins II, curso de arquitetura paisagista.
CASTEL-BRANCO, Cristina – Jardins de Portugal. Lisboa: CTT Correios de Portugal, 2014, pp. 212-217.
DIAS, Jorge; GALHANO, Fernando. – Aparelhos de Elevar a Água de Rega, contribuição para o estudo do regadio em Portugal. Porto: Edição da Junta de Província do Douro-Litoral, 1953.
E.J.R. - Sociedade Tecnica de Projectos e Construções, Lda. – Relatório do Trabalho de Prospecção: Quinta das Machadas. Setúbal: Documento policopiado, 2009.
PINA, T. F. A. – Análise dos Sistemas Hidráulicos Antigos – Conventos de S. Paulo e dos Capuchos – Setúbal. Lisboa: Instituto Superior de Agronomia, 1996. Relatório do Trabalho de Fim de Curso de Arquitectura Paisagista.
http://europeangardens.eu/inventories/pt/ead.html?id=PTIEJP_Lisboa&c=PTIEJP_Lisboa_J73&qid=sdx_q41